Véspera de Natal - X . Reis

Para ler ouvindo: Carol of the Bells (DJ Maj ft. Gabe Real)




21 de Dezembro de 2012, Belo Horizonte, Minas Gerais

Jared Leto gritava que “éramos os reis e rainhas da promessa” com toda a potência de voz que conseguia, os fones estavam um pouco estourados, mas até poucos dias atrás aquela música ainda arrepiava Joshua. Não naquele dia.
A fumaça com o cheiro amadeirado de maconha viajou pelas vias respiratórias do rapaz e chegou ao seu cérebro. A sensação prazerosa geralmente tornaria a música do “30 Second to Mars” ainda mais arrepiante.
Não naquele dia.
Dezesseis anos desde que o Universo decidira que Joshua sobreviveria e seu pai morreria tentando salvá-lo.
Isso ainda tornava os natais de Joshua um pesadelo.
As luzes de natal ficaram mais coloridas e animadas de repente.
Mas no coração do jovem ainda o peso.
Um boneco de neve nunca terminado.
Uma família McLean racista que tomara na justiça tudo o que pertencia ao seu pai e mandara Joshua e a sua mãe de volta ao Brasil sem ninguém para ampará-los.
Os pais da jovem Iara não lhe deixaram sem abrigo, mas a trataram tão friamente que ela não aguentou.
Então ela mudou para Minas Gerais na promessa de um novo emprego.
Mas tudo que eles conseguiram foi sofrimento, amargura, e um casebre numa região perigosa de Belo Horizonte.
Poucas coisas realmente boas aconteciam.
Uma delas foi a oportunidade de aprender a tocar bateria.
Tocar é o que expulsava todas as coisas ruins de Joshua.
A sua mãe cuidava dele, mas ele sabia que a frieza habitual era de alguma forma por que ela o culpava pela morte do pai, e toda vez que olhava na sua face, lembrava-se de David.
Mas as vezes ela fazia algo extraordinário.
Como pegar o seu décimo terceiro salário e comprar uma bateria básica de segunda mão para o filho.
Fora um dos natais mais felizes da vida de Joshua.
Mas ainda assim, a escuridão estava lá.
Ele não lembrava muito bem.
Lembrava-se da neve, do sangue, do impacto.
Mas não sabia exatamente o que acontecera.
Não importava.
O sentimento que tinha era que ele, não seu pai, deveria ter morrido naquele dia.


Desde aquele dia em 1996, Gabriel observava Joshua com carinho.
Já interferira mais de uma vez na vida do garoto.
Assim como Azael, seu anjo.
Naquele momento, em que o rapaz fumava em cima da laje da sua humilde casa, Gabriel observava e se perguntava o por que aquele garoto trocara a vida que ganhara do céu pela vida que lhe concederam na Terra.
-Por que o Inimigo sempre transforma isso num jogo de egos, Pai?
-Por que foi assim que ele começou tudo, Gabriel... Com um jogo de egos que acaba refletindo na vida de muitas pessoas. Todas as decisões tomadas influenciam as vidas ao redor, e isso causa uma onda de consequências nas quais eu interferir ou não pode ser benéfico ou maléfico. A rede de como tudo se relaciona é grande e complexa demais para que quem não tem a visão que tenho das coisas entenda. Inclusive quando se trata de morte de inocentes.
Gabriel estremeceu.
-Como naquela vez de Herodes?

Os magos saíam do palácio de Herodes em direção à Belém para visitar o Rei nascido, Herodes pedira para que eles passassem por Jerusalém quando estivessem voltando e avisassem onde o menino estava, e já alimentava uma terrível ideia em sua mente enquanto, no céu, os representantes do Universo reunidos, recebiam uma visita inesperada.
O que os humanos chamariam de “Sala de Reuniões” do céu está muito além do que podem imaginar.
Todos ali presentes ouviam com ansiedade o que estava acontecendo.
O que realmente significava o “Verbo feito carne” e habitando entre os humanos.
Palmas foram ouvidas.
Uma risada irônica, carregada de um humor negro gélido.
As vestes eram impecavelmente escuras e repletas de pedras preciosas claramente terrestres devido ao brilho um tanto apagado se comparado ao brilho das pedras que enfeitavam o salão.
A pele tão pálida que parecia mármore. Claro, a expressão gélida ajudava nessa impressão.
Era ainda uma belíssima criatura.
Mas sem brilho.
A glória do Pai refletia em todos ali, exceto nele. Ele parecia rejeitá-la, como se estivesse dizendo que não precisava dela, podia cobrir-se com a própria.
Suas asas pareciam quase negras.
As pontas pareciam ainda mais. Era cheia de gotículas de um líquido enegrecido.
Gabriel não gostaria de pensar no que aquilo seria.
O Pai dirigiu-se a ele:
-Estava esperando que você viesse.
Satanás riu.
-É claro! Afinal, você já sabia que viria, não é? Sua onisciência... Será que se o livre arbítrio fosse algo verdadeiro eu teria vindo mesmo? Você saber que eu viria não fez com que eu viesse?
-Não apele para argumentações eloquentes sem fundamento, Satanás. O que o trás aqui? Da última vez que veio você quase destruiu a vida de um dos meus mais fiéis servos, lembra?
A mesma risada sarcástica, mas agora com uma ponta de amargura.
-Jó... “Homem íntegro”... Não foram essas as palavras usadas por Moisés para descrevê-lo? Se soubesse que a destruição que causei na vida dele fosse servir de inspiração para muitos...
-Você não teria vindo aqui, não é? Você tentou provar que eu não tinha mais nenhum err... “súdito” fiel a mim no meu Reino. Mas estava errado não estava?
Satanás cerrou os punhos.
O ódio que emanava dele era quase palpável.
Olhou para o canto da sala e viu Moisés lá.
-Você trapaceia! Aquele lá era meu, por direito! Você sequer discutiu comigo quando o desenterrou para ressuscitá-lo e trazê-lo pra cá!*
-Não é trapaça. Você sabe que não... Eles são todos meus por direito.
O Inimigo estremeceu.
-Um bebê... Um bebê? Sério? – Então riu – Você foi ao mundo como... Um bebê? Numa manjedoura? Como espera que os seres humanos te adorem? Como espera que eles o vejam como um rei? Você se reduziu a nada!
O Pai não jogou na cara do que ele não sabia de nada, não olhou-o com ódio. Mas olhou-o com uma tristeza profunda.
-Essa guerra ainda está pra acabar. Ainda não acabou tudo. É certo que você foi longe demais, mas você ainda não foi acusado. Você ainda...
-Não me venha com conversinhas. Por que insiste em algo que sabe que não dará resultado. Posso não ter conhecimento pleno a respeito de tudo o que você planeja, mas eu sei que você já me batizou de Azaziel.
Os anjos presentes abriram a boca.
Mas o Pai não parecia surpreso.
Claro.
-A escolha sempre foi sua... Lúcifer.
O Diabo tremeu diante da pronúncia do seu nome de luz.
Filho da Luz.
Filho de Deus.
Sua expressão de ódio por alguns minutos foi substituída por uma nostalgia quase adocicada.
Mas então olhou Deus sentado ao trono e mais uma vez cobiçou-o.
-Eu sei que você sabe se você falhou, mas nunca revelará a ninguém até que ele vença ou perca, não é?  Atrapalharia o suposto livre arbítrio, dele, dos homens, dos anjos, e claro... o meu!
-E qual sua escolha?
-Você desceu literalmente tão baixo que não terei nada mais a fazer senão aceitar o desafio. E você sabe, se você falhar, eu serei rei daquele mundo e daquela raça insignificante de uma vez por todas.
O Pai sorriu tristemente:
-Eu sei o que você planeja. Não vou impedir que você tente a Herodes  por que a escolha será dele, não sua. Mas ambos sofrerão terríveis consequências. Mas você acha mesmo que você é rei? Tem certeza? Neste exato momento três dos seus supostos súditos, estão jogando suas coroas aos pés do meu Filho.
O anjo caído nada disse, olhou com um ódio profundo pra Deus, odiando todo o amor que este representava, e saiu da sala.
Enoque perguntou a Deus:
-O que isso significa?
-Significa que a terra será um lugar mais escuro e sangrento nos próximos dias, e eu não posso evitar. Mas todos terão a recompensa necessária, melhor até do que a de Jó na Terra.

Maria não podia acreditar no que estava vendo.
Três nobres homens acompanhados de alguns servos e camelos se postavam em frente à casa que ela e José haviam conseguido em Belém para passar uns dias até que Jesus estivesse crescido o suficiente para suportar uma viagem.
Esse dia estava quase chegando, mas a estrela permanecia os acompanhado aonde iam.
Os magos estavam explicando que estudavam os céus e se interessavam pelas profecias hebraicas, ficaram impressionados ao saber que o próprio povo hebreu estava alienado ao que estava acontecendo.
Balthazar adiantou-se e ajoelhou diante do menino depositando aos seus pés uma caixa de madeira enfeitada com floreios dourados:
-Ouro, para honrar o único rei!
Gaspar aproximou-se com outra caixa, escura e mais comprida:
-Incenso, pelas alegrias que ele trará e passará!
Belchior com um cesto e um frasco escuro dentro dele:
-Mirra, para a dor pela qual ele passará e tirará do resto da humanidade. Temos títulos de nobreza nas nossas terras, mas quando o Deus do Universo se reduz a uma frágil criança, somos obrigados a lançar nossas coroas ao chão enquanto a estrela brilha.

Gabriel contemplou aquela cena com um sorriso no rosto.
Mas logo esse sorriso se desfez.
-Preciso que você os avise, Gabriel! Satanás está a caminho e sussurra ao ouvido de Herodes que o “rei deve ser morto”! Diga em sonhos aos magos, que voltem para o Oriente por outro caminho, não avisem a Herodes como ele os pediu.  Ainda não é hora do meu sangue ser derramado. Quando for, todos os que morrerem agora estarão aptos a viver novamente. Por enquanto, só Jesus pode escapar.

Agora, no ano que os humanos ocidentais contavam como 2013, o natal chegara.
A população da Terra era enorme. E poucos, uma quantidade muito pequena de pessoas, jogava suas coroas ao chão perante o Rei.
Enquanto olhava para a coroa de fumaça que cercava a cabeça de Joshua, que há  4 dias subia na laje para viajar ao seu mundo verde, Gabriel pensava em todas as escolhas que Deus tivera que fazer para poupar toda a humanidade.
Pensava no que Deus ainda faria por aquele jovem que se encontrava olhando as luzes um pouco mais brilhantes nessa época do ano.
Então veio a resposta:
-Sua hora chegou, Gabriel...

*Judas v. 9

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