[série] Dezembro de Deus | Cap. II - Panis et circenses

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Julho de 1978

“Se deixo um negro entrar na piscina, cem brancos saem imediatamente”.

As palavras de um dos diretores do Clube de Regatas Tietê saíram em um jornal que Zé leu.

Com seus 12 anos de idade, o menino pela primeira vez olhou no espelho e viu que sua cor o impediria de entrar num clube, depois que quatro garotos parecidos com ele foram impedidos e provocaram uma comoção.

Quando ouviu que dona Marta, sua vizinha, estava indo pra frente do Theatro Municipal protestar em favor dos pretos, Zé queria ir. Mas o pai não deixou.

- Não vai não! Você é muito novo pra isso! - João Pedrosa disse com sua voz grave, seu sotaque baiano e sua feição sempre carrancuda - E só tô vendo os macumbeiros irem! Isso não é coisa de crente não

- Mas dona Marta tá indo e é da igreja - protestou um frustrado Zé.

- Já falei que não vai, Zé!

Zé não foi. Mas foi brincar na rua e, pela primeira vez, aceitou o convite de uns garotos da vizinhança para tentarem reproduzir as pichações que o tal de Juneca tinha feito nos muros da cidade, causando um alvoroço.

Na hora que chegou em casa, encontrando seu pai e sua mãe comendo e assistindo à novela Te contei?, Zé já tinha pixado dois tigres e três leões em paredes do bairro e escondido a latinha no quintal.



Outubro de 1980


Num geral, Zé não gostava mais de ser chamado de criança, mas naquele ano a escola preparou uma ida ao clube para as crianças da sua escola.

Não se incomodou que todo mundo que estudava já o ginásio fosse chamado de criança pela direção para uma excursão ao clube.

Agora ele estava parado em frente à piscina.

Vários dos seus colegas tinham chegado para pular direto lá, mas ele não conseguiu deixar de observar que quando entraram, várias pessoas brancas, provavelmente sócias do clube, saíram da piscina. Algumas chegaram a arrumar as coisas e ir embora.

“Se deixo um negro entrar na piscina, cem brancos saem imediatamente”.

Joca, um dos garotos que jogava futebol com Zé no campinho do bairro, acenou pra ele de dentro da piscina:

- Pula aqui, Zé! Tá gostosa a água.

Zé ficou sem expressão.

- Vem logo, pô! - insistiu Joca, jogando um pouco de água no amigo.

- Não molha, cara! Tô de roupa ainda.

- Então tira e vem!

Zé viu mais uma pessoa branca, que estava a cerca de um metro de Joca, fazer cara feia e sair da piscina. Acompanhou todo o trajeto da pessoa até um dos quiosques que ficavam perto da lanchonete do clube.

Naquela semana alguns meninos da escola de Zé tinham apanhado da polícia. Um deles apanhou tanto que morreu. 

Dois anos atrás, quando quis acompanhar dona Marta na manifestação no Theatro Municipal, Zé queria reivindicar seu direito de entrar na piscina. Ele não tinha entendido direito o que tinha acontecido com Robson Silveira da Luz, nem com Nilton Lourenço.
Agora que ele entendia, ficou com raiva que toda aquela gente podia pagar pra entrar numa piscina e transitar por todos os lugares sem nenhum medo, exceto o medo que tinham de pessoas como ele.

- Você vem ou não vem? - perguntou Joca.

Zé pulou na piscina de roupa e tudo.
Eles que saíssem.



Fevereiro de 1983


Zé passou em frente à escola e seu coração se encheu de raiva.

Ele sempre quis entrar na faculdade. Queria ser professor. Ia ensinar as crianças que eram como ele sobre coisas que ele tinha aprendido com o pessoal do MNU. Que eles não eram descendentes de escravos, que na verdade, podiam ser descendentes de reis e rainhas dos países bonitos lá de África.

Mas ele não podia deixar a mãe alimentar sua casa sozinha. Ele tinha mais quatro irmãos mais novos. E seu pai morreu em dezembro passado. Pegou uma gripe que virou pneumonia. Não conseguiu ser atendido em nenhum posto médico.

Véspera da festa das Luzes.

Fez com que Zé nunca mais quisesse nem comemorar a festa das Luzes. Afinal, foi o dia do funeral de seu pai. Eles nem tiveram dinheiro pra cumprir o desejo do seu João Pedrosa de ser enterrado em Nazaré, a cidade que ele morava na Bahia.

Zé olhou pra janela da sala que seria a sala do segundo ano colegial e finalmente lembrou a razão real pela qual passava por ali para ir para o trabalho, ao invés de cortar caminho pela outra avenida.

Maria acenou da janela.

Ele sorriu e é como se toda essa raiva que encheu seu coração sumisse.

“Eu vou casar com essa menina”, pensou.

E seguiu para o trabalho.


• 


O trabalho de Zé era braçal, porém ele gostava.
Exigia habilidade com as mãos e também com o cérebro. Ele tinha que talhar madeira de acordo com os moldes que davam pra ele talhar. Ele gostava de modelar especialmente as madeiras mais escuras que lembravam a cor da pele de Maria, que era mais clara que a sua.

Zé se considerava sortudo por ter herdado o emprego do pai, mas não conseguia gostar de jeito nenhum do filho do dono da marcenaria, Luiz Roberto Alonso Júnior, que agora era o gerente e ficava tentando mandar em Carlão.

Luiz Roberto Alonso pai era um ricaço dono de várias lojas na cidade que aparecia apenas pra colocar defeito no que faziam, mas não entendia nada do assunto. E agora que o filho tinha falhado em passar na universidade, obrigou o rapaz a ajudar a tomar conta dos negócios.

Mas quem entendia mesmo da marcenaria era o braço direito do Luiz pai, o Carlão. Carlão era uma das pessoas mais legais que Zé já conhecera. Conhecia antes de trabalhar com ele, pois era amigo do seu pai. 

Mas naquele dia, Carlão estava nervoso.

- Você tá esquentadinho hoje, Carlão! O que foi?

Carlão soltou um muxoxo.

- Ai, é seu Luiz Roberto com as presepadas dele. Quer que eu despeça o Beto.

- Despedir o Beto?

- Sim!

- Mas por que? - perguntou Zé intrigado, já que Beto era o melhor marceneiro depois do Carlão.

- Algumas coisas começaram a sumir no galpão. Eu desconfio que seja o Juninho, mas acho que o Juninho buzinou na cabeça do pai dele que foi o Beto. Mas Beto não pode perder esse emprego agora. Ele acabou de casar, coitado. Eu sei que ele não roubaria nada. Mas como a gente prova que foi o Juninho?

Zé sentiu a raiva tomar conta do coração dele de novo.

Naquele momento, ele previu tudo corretamente. Beto foi despedido, Juninho continuou tomando conta de tudo e as coisas continuaram sumindo. Por fim, Carlão foi despedido também. Zé achou que ia perder o emprego, mas acabou ficando no lugar de Beto.
Juninho aumentou um pouco seu salário, mas começou a pedir favores pessoais.

Um dia, ele apareceu na porta da casa de Zé, um pouco antes do jornal, para buscar Zé pra consertar o pé de uma mesa na casa dele.

Naquele dia, Zé tinha chegado em casa e recebido a notícia de que Beto tinha se envolvido com o crime para tentar sustentar a esposa que tinha ficado grávida. 

A mãe de Zé, dona Geruza, enquanto comiam uma farofa de ovo com salada de tomate, contou triste que tentou dissuadir o rapaz daquela vida, mas ele respondeu:

- Já que eles sempre vão me ver como ladrão, dona Geruza, é isso que vou ser.

Em quarenta minutos, Zé estava consertando o pé de uma mesa de jantar. Parecia que alguém  tinha batido a cabeça ali, muito forte. Zé estranhou que a esposa de Juninho tinha corrido pra dentro do quarto quando ele chegou.

Nem quis imaginar o que tinha acontecido.

Quando terminou o serviço, Juninho insistiu que Zé ficasse pra janta. Gritou, ríspido pra esposa descer e pra empregada vir servir.

Zé mal conseguiu beliscar o frango assado acompanhado de alguma coisa com uns cogumelos que ele não sabia o que era e não tinha gostado. Preferia a farofa com ovo da sua mãe.

Também tinha um pão, tipo uma torrada que eles colocavam uma salada de tomate em cima. Tinha um nome italiano lá. Mas ele não lembrava qual era.

Juninho ficava pedindo ou dando ordens o jantar inteiro:

- Me passa a salada pra mim, por favor!

- O pão por favor, só mais um pedacinho.

De resto, a conversa dele era sobre dinheiro, futebol e fofocas do clube.

Mas Zé só conseguia pensar em Beto.

A raiva invadiu de novo o coração dele, mas antes que fizesse alguma besteira, ele pediu licença e foi embora.


• 


Abril de 1984


- Descansa no Senhor e espera nele, não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios. Deixa a ira, abandona o furor; não te impacientes; certamente, isso acabará mal. Porque os malfeitores serão exterminados, mas os que esperam no Senhor possuirão a terra...

Zé ouvia atentamente o pastor quase gritando o salmo 37.

Ele não tinha parado pra prestar atenção no culto ainda. Estava preocupado com Maria, que sumira aquela semana e, pela primeira vez em muito tempo, não estava na igreja no culto. Nem ela, nem dona Zilá.

Mas o salmo, por algum motivo, captou sua atenção.

Tinha algo nele que o estava incomodando.

Quando acabou o culto, Zé foi procurar o pastor Arlindo. Esperou ele atender algumas irmãs que queriam visitas em casa e alguns diáconos que estavam reclamando do barulho de conversa na igreja. Quando finalmente viu Zé, o pastor já perguntou;
- Zé, meu querido! Que bom você aqui. Mas senti falta de Dona Zilá e Maria. Sabe delas?

- Não sei, não, pastor! Mas vou passar na casa delas agora pra saber o que aconteceu. Eu queria mesmo te fazer uma pergunta sobre o texto que você leu.

- Pois, diga, Zé!

- Lembra do Carlão, pastor? Que trabalhava com meu pai?

- Lembro sim, Zé. Que tem ele?

- Uma vez, quando fui reclamar com ele sobre o que estava acontecendo no trabalho, depois que ele foi demitido injustamente, ele me mostrou uma música. Era uma música do mundo, pastor. E era muito doida a música. Mas eu fiquei matutando nessa música um tempão. Era daquela banda, Os Mutantes. Eles ficavam falando que fizeram de tudo pra mudar as coisas, mas as pessoas na sala de jantar estavam ocupadas em nascer e morrer. O Carlão me mostrou essa música pra falar sobre a família do patrão e sobre gente rica. Mas eu tava pensando em como meu pai, a dona Zilá… Todo mundo passou a vida me aconselhando a não me envolver com os movimentos de protesto. Mas, pastor… Não é inveja dos ricos. É raiva da injustiça mesmo! E eu fiquei incomodado porque esse negócio de descansar no Senhor parece esperar sentado enquanto tem gente que nem eu morrendo, tem gente sendo torturada. Gente inocente. E eu não tenho o direito de me irritar?

Pastor Arlindo ouviu tudo atentamente. Diante da pergunta de Zé, ele sorriu.

- Sabe, Zé… Infelizmente tem muita igreja e muito pastor que pensa assim. Que a gente não pode lutar contra as injustiças da sociedade. Eles caíram na lorota do governo de que lutar contra a injustiça é comunismo. Então, pelo amor do Pai, não conte a ninguém que estou falando isso com você, mas você sabia que, na Bíblia, todas as vezes que Deus se ira com a humanidade é por causa da injustiça? Essa música que você falou… Panis et circenses. Pão e circo. As novelas, os filmes indecentes nas salas de cinema, as notícias alteradas. Tudo isso é pão e circo. As pessoas na sala de jantar não ligam pra nada além do mundo delas. Não é isso que a Bíblia ensina a gente a ser, Zé. A Bíblia ensina a gente a libertar o oprimido. Por isso eu faço questão de ter sempre programas de ajuda ao povo do bairro aqui na igreja.

- Mas então eu entendi errado o texto que o senhor leu hoje, pastor!

- Um pouquinho só. A revolta com a injustiça não é sinônimo de inveja dos maus que prosperam. Raiva pura, sem motivo, movida pela inveja, não é algo bom pra se plantar no coração. Nisso você pode descansar no senhor. Por mais que você lute, muitas vezes a justiça não será feita. Mas continue lutando e descanse no Senhor. Uma hora aqueles que praticam injustiça vão ter o que é deles!

- Igual as bem aventuranças, né?

- Exatamente, Zé! Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão fartos!

- Obrigado, pastor!



Naquela noite, enquanto caminhava para a casa de Maria, Zé pensou muito no que o pastor tinha dito. Aquele fogo, que acendeu no coração dele quando tinha 12 anos, nunca apagou, mesmo ele jogando água toda vez que acendia.

Se arrependeu de ter dito pra Maria que não iria com ela nas manifestações.

Ia dizer pra ela pra eles irem juntos.

Chegou no pequeno portão desengonçado que separava a rua da porta da frente da casa, abriu e bateu na porta.

Dona Zilá atendeu.

Pareceu ligeiramente apreensiva ao ver o genro.

- Oi, Zé! Tudo bem?

- Eu tô bem sim, dona Zilá, mas fiquei preocupado que vocês não foram na igreja hoje.

- QUEM É MÃE? - Maria gritou lá do banheiro.

Dona Zilá fingiu que não ouviu e saiu, fechando a porta e empurrando o Zé um pouco.

- Olha - começou a dizer cochichando - a Maria vai me matar se souber que tô falando isso com você, mas ela tem um negócio muito sério pra te contar e ainda não sabe como. Por isso ela não quis ir na igreja hoje! Pra não ter que te encarar sem contar o negócio.

Zé enrugou a testa. Devia ser algo muito sério mesmo pra dona Zilá aceitar isso como desculpa pra elas não irem à igreja. O barulho do chuveiro cessou.

- Agora você me assustou um pouco, dona Zilá.

- Mãe? - Mari gritou lá de dentro.

Dona Zilá suspirou e olhou apreensiva para o genro antes de responder.

- É o Zé, Maria!
Maria deve ter corrido em tempo recorde pra se vestir. Chegou correndo na porta com o cabelo molhado e cara de medo.

- Oi, Zé!

- Eu vou entrar! - disse dona Zilá, abandonando a filha na sua tarefa. Maria fez o mesmo que a mãe tinha feito e empurrou Zé pra fora, fechando a mãe dentro de casa.

- Minha mãe já te contou, né?

- Ela só me disse que você tinha algo pra te contar.

Mari olhou ao redor, como se tentasse encontrar ajuda no limoeiro solitário que ficava na pequena faixa de terra na frente da casa. Suspirou.

- Olha, não tem jeito fácil de dizer isso, e provavelmente você não vai acreditar na minha explicação, porque é literalmente um milagre divino.

- Fala logo, Maria, você tá me deixando nervoso já!

Pausa.

- Eu tô grávida, Zé.


•••

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