[série] Dezembro de Deus || Cap. I - Anunciação

 

Capítulo I - Anunciação


Abril de 1984


- Maria de Deus! Eu já te falei pra não sair em dia de manifestação, menina! O que aconteceu com você?

O sotaque de Dona Zilá ficava ainda mais forte quando ela estava brava. Deu uns tapas na cabeça da filha pra tirar um pouco do pó branco que cobria seu cabelo curto e crespo.

- Nada, mãe, tá tudo bem…

- Tá tudo bem nada - disse a senhora, tirando os olhos do cabelo esbranquiçado e olhando bem pras pupilas de Maria, séria - cê foi pra manifestação, foi?

- Claro que não, mãe!

- Mas tava na cidade?

- Eu só passei…

Zilá deu mais uns tapas no ombro de Maria. Mas esses foram mais doloridos

- Deus não gosta da gente se envolvendo nessas coisas não, Maria! Isso é coisa desse povo de faculdade, onde ficam colocando titica na cabeça de gente rica.

- Né titica não, mãe! É direito…

Dona Zilá deu um tapão final na orelha da filha.

- Pois quando você tiver sua casa, tu vai caçar jeito de ter direito. Enquanto morar debaixo do meu teto, você me obedece, oxe... Só espia o que aconteceu com seu pai! Quer passar a mesma coisa, menina?

Maria se desvencilhou da mãe e saiu resmungando em direção ao quarto que dividia com os três irmãos mais novos, segurando as lágrimas que involuntariamente apareciam sempre que seu pai era citado.

- Pois vou ter sim! Vou casar com Zé logo só pra sair daqui!

- Pois case! Você sabe que Zé também não gosta que tu vai pra esses negócio.

Maria entrou no quarto e fechou a cortina improvisada, feita de lençol, que fechava a porta do quarto. Deu graças a Deus que os irmãos estavam brincando na rua. 

Olhou no espelho pequeno pendurado num prego.

Uma lágrima cortou a fina camada de farinha que ainda estava no seu rosto.



Maria deu um tapa na mão de Zé que já ia descendo da cintura.

Foi uma decisão difícil, mas tomou.

- Zé, tu me respeita que isso aí é coisa pra gente fazer depois.

O rapaz suspirou frustrado.

- É eu sei… Desculpa. A gente tem que voltar pro culto. Sua mãe vai dar falta da gente daí depois a gente fica sem poder se beijar por uma semana - ele hesitou antes de continuar - e cê precisa parar de ficar indo em manifestação! Vai acabar machucando…

- Se você viesse comigo, a chance de me machucar seria menor- disse ela com um sorriso sugestivo.

Mas Zé não se derreteu.

- Menor nada! Essa semana eu já ganhei esse olho roxo da polícia só porque tava parado olhando um tênis na vitrine de uma loja. Gente igual a gente não pode ir nessas coisas que a gente morre mais rápido. É sério, Maria, cê tem que parar com isso!

- Vai dizer isso pro pessoal do MNU! E você concorda comigo! A gente não pode viver com medo, Zé!

- Não é medo, Maria… Sua mãe já perdeu seu pai pra essas paradas de política… Ela não pode perder você também… E nem eu.

- A gente devia casar logo! 

- Eu já falei que ano que vem a gente casa. Cê tem que se formar na escola primeiro.

- Acho engraçado você cobrando isso de mim....

- Eu não quero que você seja igual eu não, Maria. Eu quero que você faça o Magistério que você sempre quis fazer. Falta menos de um ano!

- Se nada der certo esse ano, eu nem sei se quero mais. Já pensou? Ser obrigada a ensinar pras crianças as mentiras que esse governo conta?

Zé olhou bem pra Maria.

- O que aconteceu com cê, meu broto? Cê num era assim não.

As lágrimas ameaçaram de novo a correr pelo rosto de Maria.

Ela não respondeu.

- Foi seu pai, num foi?

- É melhor a gente voltar pro culto, Zé.

Zé não discutiu. Ele sabia que cutucar a ferida podia dar ruim.

- Bora.



- Deus ouve nossas orações! - o pastor Arlindo apelava com sua voz sempre sofrida - Não tenha medo de falar com Ele do que você quiser! Suas angústias, seus anseios, seus medos. Até se você não quiser falar com ele, você pode dizer isso pra ele, MAS DIGA!

Essa foi a única parte do sermão que Maria ouviu, mas ficou pensativa.

Não lembrava a última vez que tinha orado.
Naquela noite, quando chegou em casa, esperou seus irmãos dormirem pra ajoelhar  na beira do colchão, que ficava sustentado pelas caixas de verdura que Zé trazia da feira.

- Eu estou com raiva de você - ela sussurrou com o olho fechado - por isso eu sumi. Meu pai não merecia o que aconteceu com ele e você sabe disso. Ele era um homem bom. Ele que me ensinou a conversar com você. Ele que me disse que você protegia a gente. Onde você tava quando ele…? Quando ele…? Até quando a gente vai ter que aguentar isso, Deus? Até quando?

Isso foi tudo o que Maria conseguiu dizer naquela noite.



- Formem a fila para cantarmos o Hino Nacional Brasileiro!

Os ouvidos de Maria ouviram a frase ser dita, mas seu cérebro não registrou.

Ela ficou parada olhando para o nada até que Denise deu um sopapo na cabeça dela.

- Cê num ouviu não, ô tampinha? Você fica mais na frente por que é ordem de tamanho…

- Não pega no pé, dela, Denise - disse uma menina alta e magrela que todos chamavam de Socorrinha - Ela é lerda assim mesmo… Veio da Bahia né? 

- Eu sou mineira - Maria respondeu sem saber exatamente por que. 

- Pior ainda. Baiana cansada! 

As garotas deram uma gargalhada e empurraram Maria pra frente da fila.

Quando soou o “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”, Maria voou de novo.

O som ao seu redor sumiu. Tudo pareceu ficar mais claro.

Um rapaz parou do seu lado.

Ela sentiu a presença e olhou.

Ele tinha a pele preta. Tão preta que reluzia aquela luz estranha. Fazia a posição de respeito ao Hino, com a mão no peito. Mas ao invés de cantar, sua boca formava um discreto sorriso triunfante e sereno, e seus olhos pareciam enxergar para muito além daquela escola. Vestia um tipo de uniforme militar muito branco. Branco e dourado.

Maria pensou ter ouvido o sino da catedral que ficava ali perto tocando. Mas não fazia sentido. Já era sete e meia.

Ela continuou encarando o estranho.

Quando ele finalmente quebrou o silêncio, ela tomou um susto. A voz dele parecia de muitos. Era grave e aguda ao mesmo tempo, e muito melodiosa, porém forte.

- Você está com medo.

Maria franziu a testa.

- Eu não!

- Está sim… - o rapaz continuava olhando pra frente - Mas não precisa. Deus gosta muito de você. Muito mesmo. Ele sabe que você está chateada, mas ele escolheu você pra ajudá-lo solucionar o problema do seu pai.

- O problema do meu pai não tem solução… Ele morreu.

O rapaz olhou pela primeira vez pra Maria. Ele tinha olhos cor de caramelo, quase dourados.

- Exatamente.

O sorriso dele era quase imperceptível, de tão discreto. Mas era tranquilizador.

- Você vai ter um filho, Maria. 

Maria arregalou os olhos.

- O QUE?

- Ele vai chamar Jesus.

- Jesus? Que nome esquisito é esse? Eu sempre quis que meu filho tivesse o nome do meu pai…

- Ele vai ser um menino especial, Maria. Sabe aquela promessa que você ouve todo fim de semana na igreja? É o cumprimento dessa promessa. Ele vai ser o maior de todos, ele vai trazer paz, justiça e salvação a esta Terra.

- Mas… mas... Eu nem nunca…

- Será um milagre, Maria. O Espírito Santo de Deus fará um milagre em seu ventre e você dará à luz. Por isso ele será diferente de todos os seres humanos.

Maria olhou ao redor.

Denise e Socorrinha estavam atrás dela cantando um hino nacional que ela não conseguia ouvir.

- Eu estou louca, né? Alucinando.

- Ontem você perguntou até quando vocês vão sofrer. Deus escolheu você pra carregar a resposta à essa pergunta.

Maria se lembrou de como seu pai contara sobre o Prometido. Ele fora prometido há milênios. Fora prometido a os primeiros Ish e Ishah, foi prometido a Avraham, a Yshak, a Iakov. Muitos nem acreditavam mais nele. As chances de que ela estivesse apenas passando mal eram enormes. Apenas sussurrou:

- O Prometido…

- Sim, o Prometido.

O coração de Maria acelerou.
Mas o rapaz não tinha terminado:

- Sua tia Isabel também vai ter um filho. 

Maria agora franziu a testa e arregalou o olho ao mesmo tempo.

- Okay, agora eu sei que estou doida. Tia Isabel sempre foi infértil e já tá na menopausa. Como é que ela vai ter filho?

- Esse é o milagre que vai te provar que você é a escolhida.

O coração de Maria deu um salto.

Seu pai sempre lutou pela justiça. Na verdade, ele morreu lutando por justiça. Mas ele nunca deixou de dizer que mais importante do que a luta, era lembrar que ela era passageira. Que nosso alvo principal era a Outra Terra. Depois que ele morreu, Maria deixara de acreditar nessas coisas. Ela não conseguia ver como Deus poderia se importar com a humanidade, sendo que todas aquelas coisas estavam acontecendo.

Mas… Seria aquele o momento?

- Eu tenho escolha? - perguntou.

- Sempre.

Silêncio quase total. Bem ao fundo, Maria conseguia escutar o som abafado.

“Dos filhos deste solo és mãe gentil…”

Numa fração de segundos, Maria se viu na sua casa de sua avó, na roça em Minas Gerais. O gramado verde, as roupas floridas no varal. O cavalo Bento. Mas no cavalo montava um garoto. Sem camisa, o peito nu arfando com a risada gostosa que dava. O cabelo cacheado e longo voando com o vento.

O sorriso do menino lembrou um pouco o sorriso do rapaz ao seu lado.

Num impulso instintivo de certeza do que estava fazendo, ela disse com firmeza:

- Eu topo! E seja o que Deus quiser.

O rapaz abriu o sorriso pela primeira vez e a brancura de seus dentes quase cegou Maria, que ficou atordoada até sentir o cascudo de Denise.

- É retardada, coitada!

Ela e Socorrinha saíram gargalhando.

Mas Maria não ouviu.



Todo aquele dia foi um borrão.

Quando Dona Zilá finalmente chegou em casa foi que Maria despertou de verdade.

- Você não vai acreditar, Maria!

Mas Maria já acreditava. Ela já sabia.

- O que, mãe?

- Isabel mandou uma carta pra mim no endereço da casa de dona Regina…

Dona Zilá se interrompeu tentando encontrar as palavras para o que ia dizer.

- Que foi, mãe? 

- A Isabel… Um milagre, minha filha… A Isabel tá grávida!

O coração de Maria se apertou um pouquinho.

- Como isso, mãe?

- Depois vou pegar a carta pro cê ler! Mas é todo um monte de milagres… disse que um anjo com um uniforme militar branco e brilhante apareceu pro Zeca dizendo que ela ia ficar grávida. Ele não acreditou e ficou mudo. Agora ela tá grávida… Já pensou? Quase sessenta anos nas costas, meu Deus! A gente vai ter que ir visitar ela!

Todas as emoções invadiram o peito de Maria.

Medo, apreensão, alegria, esperança.

Ela se levantou num pulo e correu no quarto da mãe e abriu a caixa com as coisas do pai dela que elas não tiveram coragem de doar ou jogar fora.

Ela pegou o vinil. Ainda estava bem novo. Seu pai comprara logo antes de morrer. Desde então ela nunca tinha escutado.

Pegou o aparelho de som que dona Regina tinha dado pra eles de segunda mão, e colocou o disco. Mexeu na agulha pra ela ficar na posição certa.

As guitarras de Alceu Valença encheram a casa enquanto Maria e Dona Zilá dançavam abraçadas, comemorando a notícia.

Maria cantou sorridente, com a cena que vira mais cedo em mente. O gramado, as roupas no varal, o garoto no cavalo.

Cantarolou com a mãe:

“Tu vens, tu vens… Eu já escuto teus sinais”.

Quando a música acabou ela foi no aparelho de som e interrompeu a introdução de Rouge Carmin.

Respirou bem fundo e olhou séria para a mãe:

- Mãe… Eu também tenho uma coisa pra te contar…


•••

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