[série] Dezembro de Deus | Cap. IV - Fé cega, faca amolada


 


Novembro de 1984


Zé estava andando como de costume em direção ao trabalho. Passou em frente à escola, onde Maria, com a barriga enorme, decidiu continuar estudando até o fim do ano, já que o nenê estava previsto para dezembro. Zé apoiou a decisão, pois queria que ela realizasse seu sonho.

Mas ela agora já não conseguia dar oi pra ele da janela, pois ela tinha que ficar perto da porta, pois queria fazer xixi a todo minuto.

Desde o casamento, em junho, eles estavam morando na casa de Zé com a mãe e os irmãos dele, pois a casa era maior que a de dona Zilá. Mas, ou dona Zilá estava sempre na casa de Geruza, ou Maria estava na casa da mãe.

Zé estava pensando nessas coisas quando de repente ouviu um tiro.

Não longe. Fora disparado do lado dele.

Um jovem de pele muito branca guardou a arma debaixo da camisa e correu.

Zé não teve tempo de registrar o que estava acontecendo.
Quando se deu conta estava correndo de dois policiais militares furiosos.

Ele sabia o que eles estavam pensando. Ele havia atirado.

Demorou pra entender que o rapaz branco tinha atirado em um policial.

Provavelmente era algum universitário radical com problemas sérios de estratégia.
O que Zé tinha certeza é de que não seria pego naquele dia, não por um crime que não cometeu. Não com seu filho prestes a nascer. Não no dia que os movimentos que vieram antes dele decidiram que seria o dia da consciência negra. 

Ele corria desesperadamente com medo de atirarem nele.

E teriam atirado, mas Zé conseguiu entrar num beco de comerciantes e despistar a polícia, mas teria que se misturar.

Sua sorte é que sempre carregava uma segunda muda de roupas para o final do dia. Não gostava de voltar para casa sujo de pó de serra. Enquanto se trocava, fez uma oração rápida.

“Deus, eu tenho seu filho pra cuidar. Cuida de mim e da minha mulher!”

Zé ficou na dúvida se fora sorte ou oração, mas voltou sem grandes contratempos para casa.



Dezembro de 1984


- Você tem certeza que eles ainda moram lá, Zé?

- Não tenho… Mas é nossa única opção, Maria…

- Olha, tomara que dê certo - disse ela fazendo uma careta - eu estou um pouco enjoada. 

- Só mais algumas horas e a gente chega, tá?

O ônibus que carregava a mãe do Prometido estava caindo aos pedaços. José sabia que se tivesse desembolsado um pouco mais de dinheiro, talvez conseguisse um ônibus melhor.

Estava se sentindo culpado por tudo isso. E estava com raiva por se sentir culpado. Sabia que a culpa não era sua por ser confundido com um bandido. Os últimos meses foram difíceis o suficiente. Vários amigos da igreja tinham se afastado deles, achando que eles tinham pecado. O pastor Arlindo tinha realmente sido afastado do trabalho por ter celebrado o casamento, a convivência de casados na casa das mães não estava fácil, e agora Zé era foragido.
Ele tinha procurado o CPDCN pra ver se conseguiam ajudá-lo, mas a polícia estava irredutível. Até um retrato falado do rapaz que tinha atirado foi feito. Mas por fim, o pessoal do movimento aconselhou Zé a sumir até que ficasse provada sua inocência.
O único lugar que Zé achava que dava pra ir era em Belém do Pará, onde ele achava que moravam seus tios. Achava, por que ninguém respondeu as cartas que ele enviou, se é que tinham chegado.

Já estavam há dias no ônibus. As paradas eram em lugares tenebrosos e Maria tinha que segurar sua bexiga de grávida por horas. Estava com as pernas inchadas.

O calor era insuportável.

Zé se perguntou em alguns momentos se toda aquela história de Prometido não tinha sido um surto coletivo. Como raios Deus deixaria o Prometido passar por uma situação como aquela?

“Só faltam algumas horas”, pensou.

- Amor… - Maria chamou com os olhos fechados e voz débil - eu não to conseguindo dormir… Canta pra mim?

- O que você quer que eu cante, meu bem?
- Qual é aquela do Milton com o Beto?

Zé começou a cantarolar, meio desafinado, e seu coração também foi se acalmando.
- Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada… agora não espero mais aquela madrugada… vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada…



A chegada em Belém não foi mais fácil. Zé não ia lá há anos, e a última vez ele ainda era bem novo. Demorou achar o endereço. Eles tinham chegado pouco depois do almoço, não tinham mais dinheiro pra comer… eles precisavam chegar logo.

Já estava anoitecendo quando encontraram finalmente a rua.

Ambos ganharam um pouco de ânimo. Número 57.

Bateram na porta.

A esperança começou a se esvair quando uma criança loira que Zé nunca tinha visto na vida atendeu a porta. Quando não soube responder o que Zé estava perguntando, foi chamar a mãe.

- Eu sei quem é sim, mas mudou daqui no início do ano! Não sei onde estão morando não…

- Nem uma ideia? - perguntou Zé desesperado.

- Nenhuma!
A mulher teve a decência de oferecer água, mas dispensou rapidamente os dois.
Quando viram que não encontrariam o tio, foram procurar um pronto socorro ou um abrigo. Maria estava começando a sentir contrações,
O desespero tomou conta de ambos. Não tinha vaga em nenhum abrigo. Ninguém aceitou hospedá-los em troca de serviços e o pronto socorro estava tão cheio que Maria disse:
- Zé… Não dá mais…

A cidade estava bonita, toda enfeitada de luzes, por causa da festa das luzes. Eles se sentaram debaixo de uma marquise, pois começara a chover. Zé tentou pedir ajuda a algumas pessoas, mas ninguém se compadeceu nem mesmo pela mulher grávida.
Era mais ou menos 00h e a rua estava completamente vazia, exceto por um vira-lata amarelo que dividiu a marquise com eles.

E foi ali que o prometido nasceu. 

Zé tentou se lembrar de todas as cenas de parto que tinha visto nos filmes. Lhe doeu quando Maria começou a gritar.

Por alguma razão, naquele momento, enquanto ela fazia força, ele começou a cantarolar:

- Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo... Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo... Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada... Irmão, irmã, irmã, irmão de fé... faca amolada…

Enquanto ele cantava, o céu se abriu… Eles não conseguiram ver, mas muita gente saiu na janela pra ver a estrela brilhante no céu de Belém, que fora anunciada por um trovão sem nuvens como ninguém na história havia ouvido.

Mais tarde, naquela madrugada, um grupo de mendigos passou por eles. Maria amamentava o bebê Manoel.
Zé estava preparado pra brigar quando ouviu os homens cochichando:

- São eles! São eles!

Um deles, com um cabelo muito alto e barba muito grande se aproximou devagar e disse:

- Licença… Podemos, por favor, conhecer o Prometido?

O coração de Maria gelou. 

- Como…?

Outro dos mendigos respondeu:

- A gente estava escondido da chuva debaixo da ponte, quando parou um homem. A gente estranhou por que ele apareceu do nada… E estava bem vestido…Parecia o Milton Nascimento…

- Parecia nada! Aquele ERA o Milton!
- Era nada! Ele era diferente, embora fosse parecido!

- Ih, desenrola, Pepeu! 

- Então… ele apareceu do nada e disse que o Prometido tinha nascido aqui na cidade e que, se a gente seguisse a estrela, a gente acharia ele.
- Pois a estrela nos trouxe até aqui!

- É ele mesmo?

Maria então contou toda a história de sua gravidez para aqueles homens sem teto. Igual eles estavam naquele momento. Eles, maravilhados, contemplaram em reverência a criança.
Pele escura, mas olhos já abertos e vivos. Grande. Nascera no tempo certo.
Mas era o tempo certo? A chuva? O teto?

- Como seu tio chama mesmo, seu Zé?

- Sebastião Oliveira. Ele era um dos melhores marceneiros que já existiram.

- ué! Mas aí é o Tião Madeira!
- Vocês conhecem ele?
- Mas é claro! Ele que constrói umas casas pra gente como nós morar. Vem com a gente, a gente sabe onde ele mora!
Maria e Zé não conseguiam acreditar naquilo.
- Vem, a gente ajuda vocês com as malas!

Zé olhou com ternura para aquele filho que era seu, sem ter um pingo do seu DNA, e ao mesmo tempo era infinitamente maior que ele.
Nem ele, nem Maria, entenderam porque Deus só enviara aqueles homens depois do nascimento. Mas enquanto se dirigiam à casa do Tião Madeira, Zé, Maria e aqueles mendigos se puseram a cantar juntos, debaixo da maior estrela que o céu já viu.


Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia
Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser muito tranquilo
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada...



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