[série] Dezembro de Deus | Cap. III - Maria, Maria

 




Junho de 1984 - Eu, José Carlos de Oliveira Silva, aceito você, Maria Pereira de Souza, e agora, Silva, como minha legítima esposa e prometo te amar e te respeitar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe.

Zé colocou a aliança fina no dedo anular de Maria com um sorriso no rosto.

Ele estava ciente dos cochichos fofoqueiros das senhorinhas com olhar de desaprovação no fundo da igreja.

Ele estava ciente também do quanto o pastor Arlindo estava arriscando seu próprio emprego celebrando aquele casamento, mesmo que não era no prédio da igreja deles. Eles estavam se casando no coreto da pracinha do bairro, que era bonita o suficiente. Eles nunca tinham visto um casamento tão cheio na vizinhança.

Zé não sabia se estavam ali pelo escândalo ou se era pela situação inusitada de um casamento na praça.

Mas todos esses pensamentos, neste momento, estavam bem no fundo da cabeça de Zé.

Naquele momento, sua certeza de que estava fazendo a coisa certa parecia rir da cara da dúvida que ele havia tido quando ouviu as palavras: “eu tô grávida”.

 

 

Abril de 1984

 

A sentença atingiu como um soco a cara de Zé. Não um soco no meio de uma briga. Um soco inesperado de uma pessoa que você tem certeza de que nunca te machucaria de propósito.

Zé não sabia o que sentir. Havia um grande vácuo no seu peito naquele momento. Não um vácuo leve. Um vácuo pesado.

Ele pensou em diversas possibilidades, todas horríveis.

Traição? Ela tinha sido violentada?

Maria se arrependeu instantaneamente de ter dito as três palavras antes de contar a história. Mas como contaria a história sem ele pensar que ela estava ficando louca?

Ou, pior, que ela estava contando uma história absurda pra ele só pra esconder algo pior?

- Zé... Eu preciso te contar como isso aconteceu.

O rapaz demorou alguns segundos para registrar que ela tinha falado novamente.

Balançou lentamente a cabeça.

- Sim... sim... Você precisa… mas não agora...

Maria sentiu o coração apertar.

- Mas Zé...

- Eu preciso absorver melhor a informação primeiro.

- Mas Zé... daí você vai absorver a informação do jeito que você quer e não do jeito que ela é.

José fez um esforço tremendo pra sair do torpor em que se encontrava e olhar nos olhos de Maria.

- Não se preocupe. Se você me disser agora, olhando nos meus olhos, que não fez nada de errado, é o suficiente pra mim.

A moça, ainda com o coração apertado, respirou fundo, tentando se tranquilizar, e retribuiu o olhar.

- Eu prometo que não fiz nada de errado, Zé.

A pontada no coração de Zé foi aguda. Ela dizer isso e ele acreditar não melhorou a situação. Ele agora estava angustiado com o que poderia ter acontecido. Mas não daria conta de ouvir a verdade naquele momento.

Ele deu um longo beijo na testa de Maria e disse, olhando-a nos olhos de novo:

- Vai ficar tudo bem.

 

 

Naquela noite, a caminhada de Zé pra casa foi repleta de nadas.

Apesar de ele ter olhado nos olhos de Maria e acreditado nela, ele não conseguia pensar em nada. Não conseguia sentir nada.

Ele não sabia o que seria a coisa certa a se fazer.

Poderia assumir uma criança que não era dele, se Maria o quisesse e ela realmente tivesse passado por algo difícil.

Zé sentiu arrepios ao pensar nisso.

Ele sabia o que era ser violentado. Mas não pensava muito sobre isso.

Espantou a lembrança horrenda da cabeça.

E pensou que talvez o melhor fosse se afastar. Ele não tinha condições de criar uma criança naquele momento. Ele estava ajudando a sustentar sua própria família.

Não contaria a mãe a inda. Ela ficaria desesperada e provavelmente diria que ele tinha que abandonar Maria.

Mas e se ele tivesse?

Quando chegou na porta de casa, seu plano era passar direto pela mãe, que provavelmente estaria cochilando, sem falar nada e se deitar.

Mas assim que chegou na porta de casa, ouviu o som.

Estranhou. Quem ouvia música em casa era seu João Pedrosa.

Desde sua morte, ninguém nunca mais tinha colocado um disco na vitrola velha.

Enquanto destrancava a porta, reconheceu o finalzinho da música.


Um nome na lama e um silêncio profundo, um pião

Um filho no mundo e uma atiradeira

Um pedaço de pau

Um pé na soleira e um pé na calçada


Léo

Léo

oh, Léo

 

Era uma das músicas favoritas do pai. O vinil Clube da Esquina 2 estava até meio arranhado já. Mas desde que eles tinham começado a ir à igreja, a mãe reclamava quando escutavam, então era só quando ela não estava em casa.

O peito de Zé se apertou ao lembrar do pai dançando no meio da sala com seu corpo preto e magro.

O aperto virou um salto quando viu Dona Geruza fazendo exatamente a mesma coisa no meio da sala, entre o sofá surrado e a televisão velha.

Ela nem tinha percebido Zé entrando.

Quando o viu, ao invés de se assustar e se recolher com vergonha, como costumava fazer quando alguém pegava ela de surpresa em alguma expressão de espontaneidade, ela sorriu e estendeu a mão pra Zé.

- Vem, meu filho! Agora é a minha favorita! Imagino que deve ser a sua também.

Zé lutou pra segurar as lágrimas quando abraçou a mãe e começou a dançar ao som de Milton Nascimento cantando que Maria é uma mulher que merece viver e amar.

A música acabou com dona Geruza cantando com sua voz doce ao ouvido de Zé:

-...é preciso ter sonho sempre... quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida.

Uma lágrima desceu no olho de Zé. Ele tentou enxugar antes da mãe olhar pra ele e colocar suas mãos em suas duas bochechas. Ela também tinha os olhos marejados.

- A gente tem essa marca na pele, meu filho. Eu, você, seus irmãos... Maria! – ela deu uma risada emocionada entre as lágrimas – A gente vai ficar bem!

Zé abraçou a mãe novamente e foi se preparar para dormir.

Mal tinha fechado o olho quando se viu, do nada, na marcenaria onde trabalhava.

Ela estava estranhamente arrumada e, no lugar do balcão tinha um palco.

No palco, Milton Nascimento sorria serenamente para Zé, que era a única plateia ali, enquanto cantava Maria, Maria.

No final, Zé se sentiu compelido a aplaudir.

Ao invés disso, porém, ele perguntou:

- Você não é Milton mesmo, né?

Aquele Milton Nascimento do sonho de Zé sorriu.

- Não... Mas acho que Milton é uma boa pessoa. Ele escreve bonito.

Zé olhou para o estranho. Por um lado, se sentia desconfortável, como se quisesse sair correndo dali. Uma espécie de medo. Quem quer que fosse aquele estranho, Zé sentia que ele era muito mais famoso e poderoso que o Milton.

Por outro lado, sentia que podia confiar nele. Havia algo reconfortante no seu olhar e seu sorriso (que não morria).

Ele parecia esperar a pergunta que escapou impulsivamente da boca de Zé:

- Você sabe o que aconteceu com Maria, não sabe?

O estranho apenas acenou a cabeça.

- O que aconteceu? Me conta?

- Se eu te contasse com detalhes você não entenderia. Talvez enlouquecesse. Mas não foi nada ruim. Nem traumático. Não foi sequer sexual.

- Como assim?

- Maria nunca esteve sexualmente nem com você, nem com ninguém.

- Como isso é possível?

- Algo me diz que você sabe a resposta.

Zé se irritou.

- Eu não sei não.

O estranho sorriu.

 

 

Dezembro de 1980

 

Dona Marta estava fazendo bolinho de chuva para as crianças e adolescentes que estavam brincando no quintal dela. Ela era uma solteirona que morava no bairro e tinha a maior casa e o maior quintal.

Como não tinha ninguém por ela, ela era uma mãe para todos na comunidade.

Zé estava cansado do jogo porque o time dele, dos sem camisa, já tinha levado uns três gols nos últimos dez minutos. Ele pediu pra sair e foi na cozinha dar uma espiada nos bolinhos de chuva, na esperança de encontrar algum já pronto pra beliscar.

- Eu sei bem o que você está fazendo aqui, Zé... Não tem nenhum pronto ainda não! – disse Dona Marta, fingindo que estava brava.

Mas Zé não saiu da cozinha.

- Como estão as coisas, Zé?

- Tudo bem, Dona Marta.

- Que bom!

- Dona Marta… - Zé hesitou um pouco - Posso te fazer uma pergunta?

- Claro, Zé!

- O que aconteceu com seu marido?

Dona Marta deu uma pausa na modelagem dos bolinhos, mas não olhou para Zé.

- Eu não cheguei a casar, Zé…

- Mas a senhora usa aliança!

- Na mão direita. O que significa que eu era noiva.

Ela suspirou.

- Ele era jornalista. O primeiro na família dele a fazer faculdade. A mãe dele estava tão orgulhosa… Mas ele falou algo que o governo não gostou…

Zé já estava grandinho o suficiente pra entender o que aquilo significava.

- Poxa, dona Marta, desculpa ter perguntado.

- Não, tudo bem… É que eu realmente não estou mais acostumada a falar sobre isso. As pessoas têm medo de perguntar. De falar sobre ele. Mas ele era uma das melhores pessoas que eu já conheci. Coração bom, sempre em busca de verdade e justiça, gentil com todo mundo. Ninguém que realmente conhecia o Paulo desgostava dele.

- Parece que a justiça nunca é feita nesse mundo, né, Dona Marta?

A mulher suspirou.

- Algumas vezes sim, Zé! Demora… E muita gente precisa dar a vida por isso.

- Mas isso não é injusto?

- É sim… É por isso que a gente espera o Prometido. O Prometido é quem vai trazer verdadeira justiça pro mundo.

- Ele tá demorando muito…

- Ele vai vir na hora certa!

- Como a gente vai saber quem é ele, dona Marta?

- Não vai ser difícil. As Escrituras dão algumas dicas…

- Como o quê, por exemplo?

- Como a profecia de Yeshayahu… eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel… Você sabe o que significa o nome Emanuel?

- Sim… eu lembro de quando minha mãe me ensinou. “Deus com a gente”.

- Isso mesmo… Deus com a gente.

- Mas vai nascer de uma virgem mesmo, dona Marta?

- E você sabe o que é ser virgem, menino?

- Claro que sei! É quem nunca…

- Olha, vai brincar lá fora pra eu dar conta de terminar esses bolinhos de chuva pra vocês comerem, anda!

Dona Marta interrompeu o papo antes que ela tivesse que explicar alguma coisa que faria dona Geruza vir cobrar explicações depois.



Abril de 1984

 

- A virgem conceberá e dará à luz um filho…

- Eu disse que você sabia - o Milton Nascimento alternativo disse sereno, ainda com seu sorriso imortal - Não fique com medo de amar Maria e aceitá-la, Zé. Ela aceitou o fardo e vai carregar sozinha se for preciso. Mas eu sei que você a ama. E você sabe o que acontece com mulheres que têm filhos solteiras e muito cedo neste mundo, né? Especialmente se forem da nossa cor. Elas são privadas de amar. E, você sabe… Maria merece viver e amar como outra qualquer do planeta!

Zé foi atingido por um sentimento quente de alegria ao mesmo tempo que sentiu o frio na barriga.

- Será que a gente vai dar conta dessa tarefa?

O sorriso de Milton pareceu ficar ainda maior.

- Vocês não foram escolhidos pelo Eterno à toa, Zé.

- Mas…

Zé se virou para Milton novamente, mas ele tinha sumido, deixando apenas a marcenaria.



Junho de 1984


- Eu, Maria Pereira de Souza, e agora Silva, aceito você, José Carlos de Oliveira Silva, como meu legítimo esposo e prometo te amar e te respeitar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe.

Maria colocou a aliança no dedo calejado e avermelhado de Zé - isso porque ele tinha tentado tirar o vermelhão do pó de serra a todo custo.
Ela lembrou do dia que ele a pediu em casamento. Na verdade, foi o dia seguinte ao que ela havia contado a ele sobre a gravidez. Ele contou do sonho que teve e disse que estava disposto a passar por tudo do lado dela.
A mãe dela não levou muito tempo para convencer. Não porque acreditasse muito na filha, mas por acreditar na integridade de Zé. 

O pastor Arlindo não foi difícil. Na mesma noite que Zé sonhou com Milton Nascimento, ele também teve um sonho esquisito. Não com Milton Nascimento, mas com o mesmo rapaz que Maria havia visto na escola.
Talvez eles tivessem problemas em convencer o pessoal da comunidade. Mas daí, isso ia ficar nas mãos de Deus. Naquele momento, Maria era a mulher mais feliz do mundo, vestida no seu vestido branco dos sonhos, que sua tia Isabel tinha feito. A moça quis que a tia estivesse ali, mas nessa altura, era impossível da tia entrar no ônibus para vir ao casamento com o barrigão.

Maria sorriu com a lembrança da barriga de Isabel.



Maio de 1984


- Eu não sei porque você está tão feliz assim! - reclamou dona Zilá enquanto elas esperavam o ônibus circular que as levaria para o bairro onde Isabel morava.

O sorriso besta de Maria oscilou pra dar lugar a uma expressão de impaciência.

- E eu não sei porque a senhora não está feliz! Eu não estou feliz só porque o governo criou um Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, mãe… Eu tô feliz por que eu tenho um propósito ainda maior do que isso na vida, eu vou casar com o homem que amo e fui extremamente abençoada por Deus! A senhora não queria que eu tomasse um rumo na vida? Constituísse uma família? Aceitasse plenamente os caminhos de Deus pra mim? A senhora tem noção do tamanho disso?

- Eu tenho - Zilá falou isso e calou-se. Não falou mais nada até chegarem na casa de Isabel.

Elas mal desceram do ônibus e Isabel, com a barriga já grande, estava indo em direção a elas.

Ela abraçou primeiro Maria. Bem forte.

Era uma senhora já com os primeiros cabelos brancos aparecendo. Nunca tinha tido filhos.

Sorriu largamente e colocou a mão de Maria na barriga dela.

- Sentiu?

Maria sentiu a barriga se mexer. O bebê estava agitado.

- Ele saltou tanto… Acho que sentiu vocês chegando! Ah, Maria, eu fui extremamente abençoada por Deus, mas você é a mais abençoada de todas as mães. O fruto que você carrega em seu ventre é semente de Eva! É o sorriso de Sara quando ela teve o filho da promessa.

Os olhos de Isabel e Maria lacrimejavam.
Zilá, de repente, sentiu algo que não havia sentido até então.

Teve até um pouco de receio de se aproximar das duas outras mães, mas se aproximou e colocou suas mãos, uma na barriga já grande de Isabel, e a outra no ventre ainda normal de Maria.

Sorriu e olhou para a filha.

- Eu tenho medo, por você, minha filha. Eu… Eu sei que Deus sabe o que faz, mas será que eu soube quando eu criei você da forma que criei?

- Mãe!!! A senhora é uma mãe maravilhosa! Eu sei que quando a senhora implica comigo é porque quer o meu bem.

- Ah, minha filha… - Zilá deixou as lágrimas escorrerem um pouco, mas logo enxugou e virou-se pra Isabel - Olha, minha filha está grávida, mas ela vai casar de branco, viu?

Isabel deu uma risada.

- Mas é claro! Vamos, gente, estamos chorando como loucas no meio da rua! Eu tenho medidas pra tirar e um vestido pra costurar. E eu estou grávida, então vai ser mais devagar do que de costume. Vamos, vamos! Seu tio Zacarias está doido pra ver vocês!



Junho de 1984


O casamento foi um escândalo para muitos. Em contrapartida, um marco na comunidade.
A zona Leste nunca mais esqueceria aquele casamento celebrado no coreto de uma praça pública. Muitos falariam sobre o pastor louco que abençoou a união de uma jovem grávida antes do casamento na praça, por que não podia fazer isso no prédio abençoado da igreja. Muitos outros nunca esqueceriam das palavras proféticas do pastor Arlindo em seu sermão. Alguns ainda estariam vivos quando se cumprissem.

- Da união de vocês eu sei que nascerá o cumprimento de uma promessa que nos foi feita há milênios. Eu sou o pastor mais abençoado do mundo por ter a oportunidade de celebrar este casamento, de testemunhar este momento histórico que eu sei que dividirá o mundo entre antes e depois! Como diria Jó ao contemplar a grandeza de Deus: eu sei que meu redentor vive e por fim se levantará sobre a Terra.

Naquele momento, todos sentiram algo diferente.
A certeza de dias melhores.
O pastor estava certo.
Embora não tivesse ideia das circunstâncias dificílimas nas quais se dariam o nascimento daquela criança abençoada.

Tudo por causa de um crime que Zé fora acusado, mas não cometera.


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