Véspera de Natal – IV . Encarnação

Para ler ouvindo: How Many Kings (Downhere)


Imagine o dobro da população da Terra todo dentro de um único ambiente.
Agora multiplique pelo maior número que consegue imaginar.
Você deve imaginar um ambiente onde as paredes estão longe demais para ser vistas.
Mas funcionava diferente com os anjos.
Zilhões de criaturas reunidas na sala do trono e conseguiam enxergar todo mundo com clareza.
Gabriel se encontrava compenetrado próximo aos Serafins que cercavam o trono.
O coração de todos eles estava pesado.
Havia algo no ar.
Os Três não.
Estavam sempre serenos, tranquilos, com aquela expressão inacreditável de amabilidade. Sempre um meio sorriso indicando que estava tudo bem quando se estava com eles – aliás, um meio sorriso de Deus pode fazer a primavera chegar no meio do inverno.
Gabriel sempre achava intrigante a tranquilidade de Deus em relação a isso.
Claro, ele era onisciente. Saberia se ia dar tudo errado ou não.
Ele era Deus certo?
Mas ele não deixava de se preocupar. E se desse errado?
 Deus sabia do final, mas ele não contara a ninguém. E Gabriel o conhecia o suficiente pra saber que mesmo se desse errado ele tentaria e persistiria até o final, para mostrar aos seres humanos o quanto eram amados. Claro que ele não dissera isso diretamente a Deus, mas obviamente o Criador sabia que ele pensava assim e por isso e Gabriel tinha certeza que havia sido Ele que contara para Azael, um dos amigos mais próximos de Gabriel, para que tentasse tranquilizá-lo:
-Acalme-se, irmão! – Azael dissera – Deus é poderoso! É ELE quem está indo nessa missão.
-Sim, Azael, mas não sei se você entendeu bem como vai funcionar isso, mas ele vai nascer, crescer, viver e morrer como um ser humano, não como Deus! Minha cabeça roda só de pensar em Miguel morto!
-Mas Ele é a vida!
-Sim eu sei, mas ele viverá como mortal! Ele está indo pra MORRER, você não entende?
-Mas você nem compreende a morte direito, Gabriel!
-E você entende? Nenhum de nós entende, mas assim como eu você viu o que ela faz com as pessoas. Ela é a mais pura definição da separação do homem de Deus, ela mostra o que há de pior nessa separação. Entra na sua cabeça o próprio Deus se entregar à ela?
-Gabriel, acalme-se! Não deixe as dúvidas tomarem conta de você! Lembre-se do que aconteceu com...
-Não me fale em Lúc... Não me fale no Inimigo, por favor! Eu não vou me rebelar!
-Mas você está começando a ficar com medo! Medo é falta de confiança no Criador! Apenas relaxe e confie no Pai! Você é o mensageiro oficial dEle! Você é um dos elos de comunicação dEle com os seres humanos. Você conhece intimamente os dois lados da moeda. Sabe que os humanos precisam de salvação, e sabe também que Ele é o único que pode ligá-los ao Pai de novo! Não deixe que os sentimentos de insegurança que foram trazidos junto com A Grande Guerra tomem conta de você!
-Mas não consigo evitar! Como posso não me preocupar quando sei que o verei contido e vulnerável na forma humana de um bebê?

Gabriel tinha exatamente (e novamente) essa questão na cabeça quando ouviu Miguel começando a falar como se estivesse respondendo diretamente a sua pergunta silenciosa, com aquele seu semblante tão amoroso que não tinha como não se sentir bem vindo, a não ser que você tivesse aversão a receber amor.
-Ahh, meus queridos, não precisam ficar tão preocupados. É o Pai que está guiando tudo. Tudo ocorrerá da maneira como deve ser. Eu não posso deixar aqueles humanos como estão... Vocês terão seus corações apertados, pois minha mente estará silente a vocês e eu estarei à mercê dos corações sem luz de seres humanos, mas isso é necessário para que a minha voz seja ouvida no mundo e para que eles possam pertencer ao nosso Reino novamente. Eles foram criados para ser minha Imagem, minha semelhança, meus amados, minha herança. Pois bem, estou indo até lá para que eles vejam que a minha imagem não está na cor dos olhos ou na textura dos cabelos, e sim em como nós amamos uns aos outros. Eu vou até lá para mostrar que não importa o quanto o Inimigo das almas diga que eles são perdedores, eles são filhos do Grande Vencedor.
“Será o clímax da nossa guerra, quando tudo será decidido. O Pai escolheu incrivelmente bem a jovem que será minha mãe, e certamente ela educará a mim – que passarei por todas as etapas de dependência dos seres humanos – com sabedoria e unção do nosso amantíssimo Espírito. Serei educado para saber quem sou, e mantendo-me firme ao lado do Pai, eu estarei de volta antes que vocês percebam. Confiem em mim, confiem no Pai sobretudo, pois é disso que se trata. Estejam prontos para obedecer às suas ordens e cantem em louvor ao seu nome, pois estou descendo ao pequeno planeta para que todo o Universo possa estar inteiramente  ciente de qual é o único nome perante o qual todo joelho dobrará!
“Eu sei que como eu amo, vocês aprenderão a amar mais e mais aquelas frágeis criaturas. Eu voltarei e as trarei de volta comigo.


O alvoroço era grande. Uma mistura de ansiedade, respeito, rejúbilo, temor e alegria.
O clima era de despedida, os votos silenciosos para que tudo corresse bem.
Mais tarde, Gabriel tentou escrever na linguagem humana como se desenvolveram os últimos momentos de Miguel no céu apenas como Deus. Sem ser “Deus conosco” para os humanos.
Mas não conseguia.
Fora uma comoção incrível, e pela terceira vez em toda a Eternidade, viu lágrimas do Pai.
Viu lágrimas quando numa cena em que nem mesmo os anjos compreenderam, Miguel foi levado à Terra junto com o Espírito, para ser a Palavra, o Verbo, a Ação, o Poder, tornando-se carne. Carne humana, tenra, frágil, com dias contados, sendo submetido ao tempo e às leis ancestrais da separação. Havia um vazio de apreensão no coração dos anjos naquele dia.
Não, não conseguiria escrever nada naquele momento. 

Seu coração se encontrava preso agora num pequeno cômodo de uma pobre casinha numa cidade rejeitada pelos homens chamada Nazaré.
Lá, Maria que estava dormindo tranquilamente, acordou ao sentir o vento que abriu violentamente a janela.
Algo aconteceu ali.
Arrepiou-se.
Suspirou.
Colocou a mão no ventre.
Agora tudo começara. A história da humanidade a ser dividida.
E ela se encontrava ali, no centro, porém de lado.
Ela sabia que o verdadeiro centro de tudo, acabara de se depositar em seu ventre de uma forma tão miraculosa que ela mesma nunca poderia entender.
Fechou os olhos para falar com o Pai.
Mas não tinha o que dizer. Não sabia se agradecia ou pedia forças.
Apenas fechou os olhos e se ajoelhou diante do que agora carregava em si.
Era o maior e mais poderoso Ser do Universo reduzido a um embrião.
Era a prova final do que João um dia viria a descrever de uma forma simples, mas profunda:
“Então o Verbo se fez carne, e habitou entre nós.”

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