Véspera de Natal – II. Dúvida

Gabriel já havia visitado o pequeno planeta várias vezes.
Levara mensagens a profetas, mostrara-lhes coisas.
Ele tinha um carinho especial pelos profetas e por aqueles que Miguel e o Pai escolhiam como líderes, sempre era enviado para entregar-lhes mensagens e dar conforto a eles.

Mas dessa vez era diferente.
O que ele ia fazer era algo que mudaria o destino de toda a humanidade.
Queria fazer direito.
Ele se mantinha em pé olhando o mundo. Já estava lá há algum tempo.
Ainda temia dar esse anúncio.
Primeiro por que, mesmo que Miguel o tivesse tranquilizado, ainda não conseguia imaginar sua ida ao pequeno planeta dando certo.
Ele temia pela vida do Mestre.
Parecia irônico temer pela vida do Deus Eterno.
Mas o modo como seria feito, o modo como tudo foi planejado por ele...
Mesmo com todo o poder que o Criador tinha... Ele abriria mão desse poder... Como...?

-Ainda oscilando entre a fé e a dúvida, Gabriel?

Era Miguel.
Gabriel desviou o olhar.
-Na verdade essa coisa ainda é nova para mim, Senhor.  Ainda não me acostumei à dúvida... Ela nos dá uma sensação de poder... Estranha... Como se pudéssemos pensar o que quisermos a respeito de qualquer coisa...
Miguel olhou para Gabriel como se divertisse.
-Isso se chama livre arbítrio, irmãozinho! Você PODE pensar o que quiser a respeito de qualquer coisa. É o maior dom que o Pai deu a todas as suas criaturas racionais.
-Mas não foi isso que permitiu que Lúcifer fizesse o que fez?
-Sim...
-E como isso pode ser um dom?
-Você me ama, não ama, Gabriel?
-Com todo o meu ser, Miguel...
-Por quê?
Gabriel ficou sem entender.
-Como é?
-Por que você me ama?
-Eu... Por que o Senhor me deu vida, me deu propósito, me dá tudo. Além disso, te amo por quem Tu és.
-Mas essa sua gratidão já nasceu com você ou você reconhece isso pelo seu próprio raciocínio?
-Pelo meu próprio...
-Vê? Eu sou a vida, sou a origem dela e também sua finalidade.  Coloquei no seu coração e no coração deles a necessidade de me procurar, não para me satisfazer, mas para o bem de vocês, pois eu sou a origem da vida de vocês... Se vocês desligam-se de mim, vocês morrem... Mas eu não queria que tudo fosse colocado no coração de vocês. Eu queria que vocês decidissem me amar por que querem, não por que EU quero.
-Mas, Senhor, essa é a causa de todos os males!
-E a definição do que é o bem! Se tivesse criado a todos “bons”, não seria bondade! Seria tirania disfarçada por “boas intenções”! Seu questionamento é o outro lado da moeda do questionamento que Lúcifer fez. Eu tentei explicar isso a ele, eu dei inúmeras chances a ele, e ele permaneceu irredutível...
-Por causa da dúvida?
-A dúvida não é o problema. A dúvida é a consequência da união de livre arbítrio, capacidade de raciocínio e a certeza de que existem corações no Universo onde eu não habito mais.  Eu não habitava mais no coração dEle... Ele me tirou de lá... Eu sei o que te inquieta, Gabriel. Não precisa temer. Isso tudo que farei ao descer até eles será a prova, a resposta necessária à dúvida. - O tom de voz dele de repente mudou para um tom brincalhão - Não me assuste, Gabriel! Por um momento pensei que você vivesse como eles, às cegas! Você sabe do poder do Pai... Não duvide.
-Perdoe-me, Miguel! Mas eu ainda tenho receio de que a Escolhida não aceite. E se ela disser não?
-Apenas confie nos meus planos.  E então, você vai ou não?
Gabriel olhou mais uma vez para o pequeno planeta ao qual iria para começar tudo.
-Eu posso mesmo escolher?
-Tanto quanto ela pode... Nunca duvide da sua liberdade, Gabriel! Você quer ir? Você vai?
O anjo, ao lado do seu Arcanjo, pensou um pouco antes de dizer:
- Fazer isso eliminará toda dúvida que Satanás depositou, não é? Qualquer dúvida sobre seu poder, sobre seu amor e sobre nossa liberdade. É isso não é?
Miguel sorriu, apenas.
-Isso quer dizer “sim”?
Gabriel sorriu em resposta:
-Por que eu rejeitaria uma responsabilidade que carrega tamanha honra?