Breve Autobiografia da Morte

Para ler ouvindo: Noite (Laura Morena), Jamais (Leonardo Gonçalves),  Novo (Leonardo Gonçalves), Ele Vive (Leonardo Gonçalves)



Você ouve falar de mim desde que nasceu.
Sou antiga. Milenar.
Mas eu não sou eterna.
Não existi desde sempre.
Eu tive um nascimento, um início.
E embora eu exista em termos de potência e possibilidade desde que foi concedida liberdade de escolha à primeira criatura de Deus, só vim a existir de fato depois da primeira escolha errada.

Há milhares de opiniões, estudos e crenças diferentes ao meu respeito.
As pessoas adoram dizer coisas sobre mim.
Muitas dizem que sou o fim da linha.
Outras dizem que sou um novo começo.
Ambas estão erradas.



Eu sou o imenso vazio da ausência da Vida.
Embora às vezes a ciência moderna pareça presumir que a ausência da Vida é algo mais antigo do que a própria, a verdade é que a Vida é eterna.
Não teve começo, nem terá um fim...
Por um motivo bem simples: Deus é Vida e Deus é Eterno.
Portanto você não tem que se preocupar comigo... A Vida é mais velha do que a Morte.

Eu não existo por mim mesma. A Vida sim.
Mas não se engane, eu tenho força. Eu arranco de você suas esperanças, seus sonhos, seu fôlego.
Eu tenho o poder de assustar as pessoas.
Mas eu não sou.
Aquele que realmente é, tirou de mim  o poder de decisão sobre quem vive e quem morre.
Está nas mãos dEle o poder de impedir ou permitir minha ação.
Por isso alguns tendem a pensar que Ele parece injusto por permitir que eu alcance pessoas boas e adie meus atos em relação às pessoas ruins.
Mas não posso deixar que continuem pensando assim.

Veja, eu vim a existir como um embrião no dia em que o Grande Dragão, a antiga Serpente, chamada Diabo e Satanás, foi expulso do céu. Aí que eu me tornei real.
Mas ninguém tinha visto minha ação ainda.
Eu tive uma fase de crescimento. Uma progressão até consumar-me como sou.
Fui o Pecado antes de me tornar sua consequência.
O Pecado é a declaração aberta de independência da Vida. Portanto, sou seu salário, seu pagamento.
Antes que eu viesse a me tornar a Morte, comecei a ser fecundada como Orgulho, logo me tornei Inveja e assim que ocorreu o primeiro confronto da Grande Guerra entre Miguel e o Dragão, me tornei o Exílio e também o Rancor.

Sei que até aí a história não parece te afetar muito. A coisa começa a se aproximar de você quando pela primeira vez a humanidade declarou independência da Vida.
Eles foram avisados que ser independente da Vida lhes causaria Morte.
Mas o Grande Dragão, como Serpente, lhes ofereceu conhecer o que ele conhecia.
Como é a ausência da Vida, que é o Bem?
Ele disse para eles que Vida e Bem eram coisas diferentes. Disse que se conhecessem o Mal, desfrutariam melhor da vida, saberiam como lidar melhor com ela... Mas eu faço parte do que é o Mal.
O Mal é o vazio de Bem, o vazio de Vida.
Portanto, se o Bem sai de cena, eu entro.
Acontece que assim que o Primeiro Homem e a Primeira Mulher morderam do fruto de Conhecimento do Bem e do Mal eu me instalei neles e na descendência deles como um vírus parasita que consome tudo o que eles tinham. Eles agora não tinham mais a Vida consigo.
Então pouco a pouco, eu fui sugando tudo.
A primeira coisa que fui para a humanidade foi Vergonha. Junto com a Vergonha, me tornei Culpa.

Então a Vida veio e mostrou-lhes a minha verdadeira face pela primeira vez.
Era um golpe que eu não esperava levar tão cedo.
Fui pega de surpresa quando Ele declarou Inimizade perpétua entre a Serpente e a humanidade.
A Vida não estava mais naturalmente com eles, mas seu coração ainda a desejava ardentemente.
Foi quando, mesmo sem a Vida eterna, a humanidade recebeu dentro de si a eternidade.
Aquilo me colocava numa posição desconfortável.
Eu nunca seria aceita completamente pelos seres humanos. Mesmo que o destino deles parecesse inevitavelmente cair nos meus braços, eles nunca iriam gostar de mim.

Isso se tornou ainda mais evidente quando, num ato de sacrifício, eu fui pega em ação ao tomar para mim a vida de um Cordeiro cuja pele serviu para cobrir-lhes a vergonha.
Deus queria dizer algo com aquilo.
Eu ainda demorei a perceber, mas ele estava avisando que eu não era mais o salário definitivo, não era mais o destino certo.
Ele estava estabelecendo novas regras para o jogo.

Os séculos foram passando e eu passei a me alimentar de mais e mais humanos.
Tirando tudo deles aos poucos. Tirava a alegria, a esperança, a saúde, e por fim a vida.
Assumi a forma de Saudade, de Doença, de Tristeza, de Insatisfação, de Culpa...
E assumindo todas essas formas vou tirando a vida de um por um que sucumbe a isso.
Às vezes me banqueteio com genocídios e guerras.
Rio da hipocrisia daqueles que usam indiscriminadamente o nome da Vida, quando na verdade estão invocando a mim.
Mas aquele cordeiro e todos os outros que vieram depois me deixavam enfraquecida.
Se me saciava com eles e com as vidas daqueles que não sacrificavam, volta e meia abraçava um ser humano que não me parecia meu quando o alcançava.
Como se, mesmo em meus braços, ele não pertencesse a mim.

Só fui compreender onde aquilo chegaria quando a Vida tornou-se humana.
Fiquei completamente chocada quando vi a Vida Eterna se escondendo no corpo frágil de uma criança.
E a medida que a criança crescia, eu percebia que ele era exatamente como os outros em alguns aspectos, mas completamente diferente em outros.
Eu sabia que seu corpo caminhava diretamente para mim, mas sua mente não me pertencia.
Era a mesma sensação que eu tinha quando abraçava alguém que havia feito sacrifícios de cordeiros a Deus durante a vida.
Era a mesmíssima sensação que eu tinha quando a vida dos cordeiros eram entregues a mim.
Eu não tinha direito de matá-los.
Era algo que não seria meu para sempre... Um dia eu os perderia.

Então chegou o dia.
O corpo da Vida estava cada vez mais próximo de mim.
Presunçosa, imaginei que talvez fosse me sentir mais forte quando guardasse toda aquela Vida dentro de mim. Mas esse é um privilégio dos seres humanos. Eles têm a eternidade no coração deles.
Eu não. Sequer tenho um coração.

Mas quanto mais se aproximava o dia, mais fraca eu me sentia.
Parecia que nós sugávamos nossas forças mutuamente.
Lembro-me que me ressenti profundamente com ele depois que ele tomou um dos seus amigos de mim depois de quatro dias que ele já havia morrido. Não era a primeira vez que ele fazia isso. Vários outros já haviam sido arrancados dos meus braços - Moisés, alguns garotos como o filho da mulher de Sunem - e outros como Enoque e Elias sequer me foram dados... Eles foram tomados de mim antes que eu pudesse tomá-los de vez.
Em pensar que quase pus as minhas mãos em Elias certa vez...

Mas divago... O fato é que quando chegou o dia, eu estava fraca pela primeira vez em toda a minha existência.
Então, numa sexta feira, às 3h da tarde, a Vida Eterna morreu.
Mas não foi nada como eu esperava.
Não consigo explicar isso de forma que vocês entendam, mas enquanto o corpo dEle corria pra meus braços, toda aquela Vida, ao invés de ser sugada para dentro de mim, explodiu.
Explodiu violentamente.
O cordeiro que estava para ser sacrificado àquela hora fugiu e a cortina do Templo foi rasgada pelo poder do Eterno.
E eu que achei que me sentiria satisfeita com a Vida morta, me recolhi durante três dias tentando agarrar pelo menos um pedaço dele para manter comigo.
Mas estava enganando a mim mesma. Sabia que tudo mudara para sempre.
Eu finalmente entendi o que os cordeiros mortos significavam.
Eles não estavam representando a mim, como eu pensava a princípio.
Eles estavam representando a ELE.
A Vida.

Aquilo me consumiu por três dias até a hora em que a Vida voltou para o seu corpo.
A Vida estivera morta por três dias.
Foram os três dias mais estranhos, sombrios e vazios que já presenciei.
Então fui ferida.
Não uma ferida que possa ser cicatrizada.
Fui atingida por um golpe do qual nunca me recuperei e nunca recuperarei.
A ressurreição.

Não era como a ressurreição de Lázaro ou de Moisés.
Não era como o arrebatamento de Elias e Enoque.
Era algo doloroso.
A partir daquele dia, começou a contagem regressiva da minha existência.
Desde então, me alimentei de muitos e muitos humanos, como sempre.Mas eu fui alterada. Eu continuo sendo o salário do Pecado, mas agora a Vida Eterna é um dom gratuito.
Sem sacrifício de cordeiros pois o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo e o tirará de uma vez por todas em breve, fez o sacrifício definitivo que me derrotou, derrotou o mal e mostrou de uma vez por todas que a Serpente estava errada.
Mostrou minha verdadeira face, minha verdadeira condição.
Diante do sacrifício dele eu não tenho como negar que sou uma anomalia.
Não deveria existir.
Sou uma ladra. Roubo o que não é meu.

Ele prometeu voltar e arrancar todos os que aceitaram seu sacrifício de mim.
Não, não há vida em mim. Não há vida após mim.
Aqueles que abraço e recolho vieram do pó e retornam para o pó.
Não sabem de nada, não sentem nada.
Não ficam em alguma espécie de paraíso observando o sofrimento dos seus queridos na Terra, nem se queimam eternamente em algum Hades, muito menos vagam perdidos em casas e ruas escuras. Eu não possuo esses privilégios e Deus não é cruel para permitir que atrocidades como essas sejam praticadas por mim.
Citando Shakespeare, é óbvio que há mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha a vã filosofia humana. Mas a humanidade é tão equivocada sobre mim, sobre a Vida e sobre si mesma que acaba tirando conclusões erradas sobre o que está além do natural.
Eu não sou um estágio diferente da vida. Eu sou a inexistência de vida.

Alguns que amam a vida podem se desesperar ao ouvir isso, mas é por que não entendem o que significou a morte e a ressurreição da Vida.
O que o Cordeiro fez foi me derrotar.
Eu estou com meu prazo de validade vencido.
Posso sentir isso.
Estou quase chegando ao fim. No meu desespero, tento agarrar mais e mais pessoas, mas nunca consigo fazer isso de forma autônoma. A Vida ainda me controla, me contém quando a pessoa ainda não fez sua escolha entre mim e Ele, e permite que eu aja quando a pessoa já fez sua escolha.
Ao contrário de mim, a Vida respeita as oportunidades de escolha e permite que alguns bons morram por que sabe, assim como eu sei, que os que morreram com a vida confiada ao Cordeiro serão tirados de mim e eu deixarei de existir quando Ele voltar à Terra - que é o único lugar no Universo onde eu posso me alimentar.

Mas não me subestime.
Você nunca sabe quando a Vida vai permitir que eu te leve, e quando eu te levar, não haverá nada mais a ser feito por você. Quando eu te levar será por que você terá feito a sua escolha.
Nunca se esqueça que se não quiser deixar de existir junto comigo, você precisa do Cordeiro e precisa dEle enquanto ainda está vivo.
Fere meu orgulho admitir que não sou tudo isso o que dizem ao meu respeito.
Estou deixando de existir. Sinto que meu fim está chegando, tenho consumido mais e mais vidas de forma cada vez mais atrozes e cada vez mais sinto as escolhas das pessoas decidindo quem será meu para sempre e quem não será.
E embora as crenças humanas modernas e pós-modernas massageiem meu ego dizendo que eu - a Inexistência - sou mais velha que a Vida, eu cansei de enganar a mim mesma.
Eu sou mais velha do que a sua ciência ou a sua filosofia.
Eu ainda era um embrião quando a Vida já existia desde sempre.
Por mais que eu queira parecer implacável e inevitável, além de mais velha, a Vida é mais poderosa do que eu.

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