Querida Morte – II . Folhas de Outono




“Belo Horizonte, 20 de Março de 2014

Querida Morte,
Queria te pedir desculpas.
Marquei um encontro com você na última sexta feira e acabei indo embora antes que você aparecesse.
Eu não sei se ainda estou preparado.
Eu tinha certeza que estava pronto. Mas a culpa não foi minha.
Apareceu alguém e eu não queria que ninguém contemplasse nosso encontro.
Queria que fosse apenas eu e você.
Mas então apareceu aquele garoto.
Não sei de onde ele surgiu, mas já o tinha visto aqui uma vez.
Gostaria de pedir desculpas por não ter escrito por esses dias, e confesso que estive pensando seriamente em parar de escrever (desculpe!), mas hoje é o primeiro dia de outono e não há como se esquecer de você no dia em que as folhas começam a cair.
E quando as folhas começam a cair, eu acabo lembrando quem eu sou e como isso afeta as outras pessoas.
De repente, senti sua falta.

Com carinho,
Pablo”

Pablo acrescentou a carta à sua pequena coleção de cartas que pretendia deixar na porta da Morte. Revisitou a cena e tentou entender o que havia acontecido.
Ele encarava o abismo com carinho.
É como se ele cantasse chamando-o.
O vento balançou algumas folhas, como se estivesse piscando pra ele.
Ele sempre ia ali encarar aquele abismo, pra ver se a coragem vinha.
Naquele dia parecia que ela estava cheirando sua nuca e sussurrando palavras de consolo.
Mas a voz que ele ouviu foi outra.
-Você sabe que se você pular daí e não morrer, as coisas só vão ficar mais complicadas né?
O susto foi enorme.
O garoto em pé ao lado de Pablo tinha uma expressão curiosa.
-Quem é você?
-Bem, essa é uma pergunta bem complexa para o momento, mas meu nome é Joshua. E o seu?
Hesitou.
-Pablo.
-Hmm, Pablo... Pode me chamar de Josh... E como eu ia dizendo, não acho uma boa ideia.
-Eu não ia pular.
-Ah, não? Que bom então...
Josh tinha um sorriso no rosto, como se estivesse se divertindo.
-O que é tão engraçado? – perguntou Pablo.
-Nada! – Respondeu o outro arregalando os olhos com sincero espanto – Não há nada engraçado aqui.
-Você também vive no abrigo?
-Não...
-O que faz aqui então?
-Vim te encontrar aqui.
-Besteira... Você nem sabe quem eu sou.
-Não mesmo. Mas devido a tudo que eu passei nos últimos meses, posso te afirmar com certeza que tem uma pessoa que te conhece MUITO bem, e não está a fim de te ver pulando daí pra baixo.

A expressão de ódio no rosto de Satanás era palpável.
Ele olhou para Gabriel, parecendo segurar-se para não ataca-lo.
-Parece que o Nazareno adora uma briga mesmo hein! Adora tomar o que é meu! Ele me desafia e depois reclama quando proporciono a morte de alguém!
Gabriel não conseguia crer no que estava ouvindo.
-Você fala isso apenas para provocar ou você realmente acredita no que está dizendo?
Satanás não respondeu, apenas deu um sorriso.
Olhou com ódio para Joshua conversando com Pablo e fez menção de avançar em direção a eles, mas parou.
Olhou para Gabriel.
Parecia que havia muitas coisas que ele queria dizer. Seu olhar carregado de ódio transparecia o quanto ele se encontrava perdido num mar de mágoas, rancores, ódio e dor. Não havia sobrado nada de bom em meio a toda a beleza e astúcia que ele possuía.
O olhar de Gabriel, cheio de tristeza por tudo isso e ao mesmo tempo cheio de autoridade, foi o suficiente para fazer com que ele desaparecesse dali.

-Eu te conheço, acho... – Disse Pablo para Josh
-Você deve ter me visto por aqui algumas vezes. A primeira vez que vim aqui foi no Natal passado.
-Sim! Você tocou com aquela banda lá umas músicas de natal de autoajuda.
Josh riu.
Esse seria o típico comentário dele mesmo sobre aquelas músicas, mas naqueles meses ele tinha aprendido várias coisas e resolveu compartilhar uma delas com Pablo:
-Você acredita em Deus, Pablo?
Pablo refletiu por um momento.
-Acho que sim. Mas o ignoro.
-Por quê?
-Sinto que ele me ignora também.
Joshua pensou um pouco.
-Por muito tempo eu ignorei a Deus. Mas eu nunca achei que ele me ignorasse. É justamente o contrário que me fez ficar chateado com ele.
-Como assim?
-Ele me salvou milagrosamente uma vez. Foi quando meu pai morreu.
Pablo levantou as sobrancelhas.
-Hmmm... Acho que entendi... Por que você e não ele?
-Sim.
-Mas por que você mudou de opinião em relação a Deus?
-Eu passei a perceber algumas coisas num ângulo diferente. E ele me mostrou quem eu sou de verdade. Meu ponto é... Você, Pablo, sabe quem é você?
O garoto foi pego de surpresa pela pergunta e respondeu instintivamente na defensiva:
-Claro que sei!
-Conseguiria definir a si mesmo pra mim?

Silêncio.

-Sabe, Pablo... – Josh apontou pra baixo – A resposta não está lá.
Um sorriso sarcástico se esboçou no rosto do outro.
-Estão onde? Em Deus?
-É clichê, mas... Sim!
-Então quando falar com ele de novo, lembre a ele que eu existo!


Pontada de tristeza e dor no coração de Jesus.
Aperto no coração de Gabriel.
Sorriso no rosto de Satanás.

Josh, porém sorriu e disse:
-Acredite, ele se lembra de você.
-Parece a você que lembra? Por que eu sei o que passo... E sei que não lembra.
-Lembra sim. Tenho certeza.
-Por que tem tanta certeza?
-Por que eu estou aqui.
Pablo olhou para a cidade lá embaixo.
Conseguia ver a favela cheia de casas pobres descendo pelo morro e logo à frente, no topo do outro morro, havia meia dúzia de mansões encarapitadas em cima.
-Ele não parece lembrar-se de muita gente.
Josh olhou a paisagem.
-Engano seu... Sabe... Não há nada de autoajuda nas músicas de natal que eu cantei, sabe por quê? Por que elas tratam do nascimento de Deus aqui na Terra, como homem. Isso por si só já seria um rebaixamento, mas ele não veio como o Rei que é, ele veio como alguém dependente. E é na dependência que está o segredo. Jesus sabia quem ele era, tinha certeza, mas ainda assim deixava o Pai dizer o que Ele devia fazer.
-Acho que isso tudo é meio papo furado.
-Ah, eu também achava. De verdade. Mas não são as coisas históricas ou científicas que vão te provar isso. Você tem que se permitir a experiência.
-Ir à igreja ou algo assim? Nem pensar... Olha, eu ia a igreja quando ainda morava com os meus pais. Meu pai era um dos líderes de lá. Sabe por que a assistência social me colocou no abrigo? Por que ele estava viciado em todo tipo de drogas e matou minha mãe numa briga enquanto estava bêbado.
Joshua absorveu a informação.
Aquele garoto parecia bem mais novo do que ele.
Mas tinha o semblante amargo, duro, envelhecido.
Havia escuridão, mágoa, dor e tristeza naqueles olhos.

Desde então, passara uma semana.
Pablo não estava certo do que fazer mais.
Acabara de guardar a nova carta no envelope negro.
Enaltecera o outono como uma lembrança das folhas que caem das árvores, secam e morrem.
Mas Joshua chegara naquele dia e impedira que ele se soltasse.
Mais tarde, ele tinha falado algo sobre dependência, sobre não podermos estar desgarrados de Deus.
A compreensão dele de repente pareceu ofensiva a tudo o que ele havia construído para si durante todos aqueles anos. Ele tinha sofrido muito, é verdade, estava cansado, é verdade. Mas não podia ser tão fraco quanto achava que era por ter passado por isso tudo, assim como ele sabia que aquela força não podia vir dele.
Um vento frio entrou pela minúscula janela do quarto e fez com que Pablo lembrasse de algo que estalou na sua mente.
Foi uma frase de uma música que o Joshua mostrara a ele naquela tarde.

"E esse vento que soprou me fez perceber que não estou tão solto assim."

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sopro e Fumaça: Avicii se foi, mas deixou um pouco de Eclesiastes em sua música

Religião no Facebook??