Querida Morte – I . Velha Amiga, Velho Amigo

Para ler ouvindo: Mathilde (Oskar Schuster)



“Belo Horizonte, 13 de Março de 2014

Querida Morte,
Espero ansiosamente sua visita.
Eu sei que a maioria das pessoas correria de você. Acham que você é uma aberração.
Eu me identifico com você.
Às vezes sou invisível, às vezes vazio.
Sou um completo desconhecido mesmo para os que moram comigo.
Eu desperto medo, nojo, desprezo nas pessoas.
Assim como elas fogem de você, elas fogem de mim.
Gostaria de te encontrar e te conhecer para te perguntar como você lida com isso.
Você é como nós humanos?
Acredito que não. Caso contrário você própria já teria deixado de existir.
Veja bem, digo isso por que nós humanos temos essa necessidade insana e inexplicável de nos relacionarmos uns com os outros.
Mas isso não funciona comigo.
Eu tenho a mesma necessidade, mas não posso supri-la, pois as pessoas fogem de mim.
Anseio pelo dia no qual te encontrarei e nos entenderemos.
Gostaria de ter coragem de te procurar eu mesmo, mas ainda sou vencido pelo medo que também é natural em nós.
Mas sei que você virá logo.
Te abraçarei apertado, como uma velha amiga.

Com amor,
Pablo”


O garoto dobrou o papel onde escrevera sua carta e o colocou dentro de um envelope negro.
Pele escura, cabelos raspados, cicatrizes aqui e ali, e profundos olhos escuros e tristes.
A tristeza era quase palpável. Ela estava impregnada nas paredes do quarto minúsculo.
Havia um computador branco com uma tela de Windows 98 aberto no jogo de cartas.
Do computador vinha uma melodia triste tocada no piano.
As roupas ficavam guardadas numa espécie de prateleira de madeira obviamente desgastada.
A cama era coberta com uma colcha feita de remendos coloridos e não tinha cabeceira.
Pablo colocou o envelope dentro de uma caixa de madeira embaixo da cama.
Apagou o monitor do computador, apagou a luz, deitou e dormiu.

Gabriel ainda tinha dificuldades com todos os nomes que Miguel possuía.
Ele se acostumara com Miguel.
Mas o Filho continuava insistindo que lhe chamassem pelo nome hebraico.
Yeshua. Jesus.
Jesus tinha uma expressão dolorosa.
-Quero que você observe o Pablo.
Gabriel franziu o cenho.
-O Pablo? Mas achei que era pra eu cuidar do Joshua!
Jesus sorriu.
-Mas eles estão intimamente ligados!
-Como?

Josh esfregava com vigor as vasilhas e as enxaguava enquanto Iara as guardava.
A mulher, com olheiras profundas e mais rugas do que a idade dela deveria permitir, olhou para o filho com um misto de satisfação e curiosidade imensas.
-Quando foi que te perdi, Josh? E quando foi que te recuperei novamente?
O garoto largou a panela de pressão que esfregava na pia e olhou para a mãe.
-Como assim, mãe?  - Ele perguntou receoso.
Sabia que aquilo podia significar uma conversa que eles deveriam ter tido há muito tempo.
Algo que mexeria em feridas que ambos haviam feito questão de tapar e maquiar, mesmo que não estivessem curadas.
-Acho que você acha que nunca reparei em você. Que nunca te percebi. Que nunca soube dos seus vícios.
O rapaz permaneceu em silêncio.
Iara prosseguiu.
-Eu não tinha coragem de dizer nada. Eu sei que a culpa é minha...
-Mãe... – Ele tentou interromper.
-Por favor, Josh! Nós dois sabemos que certas feridas não se fecham enquanto negamos que elas existam ou nos recusamos a curá-las.
Joshua levantou os olhos das vasilhas e olhou para a mãe.
-Mãe... Eu te culpei por tempo demais. Mas eu não posso exigir da senhora algo que nem você tinha. Tudo o que eu via quando a senhora olhava pra mim era a morte do meu pai. Eu não queria te culpar, pois sei que você não pôde fazer nada, então...
-Então você culpou a Deus, ao mundo e ao destino.
-Sim. Eu quis descontar no Universo a minha raiva. Queria provar que eu tinha o controle de tudo, da minha própria vida, queria provar que eu decido meu destino. – Joshua deu uma risadinha nervosa – Ridículo. O Universo me deu um tapa na cara quando me mostrou que eu era pequeno demais pra fugir de qualquer coisa que fosse, e ao invés de encarar isso com maturidade, eu me refugiei nas... Nos meus... Vícios. Pra quê adiar o inevitável, não é?
Os olhos de Iara estavam marejados.
Ela suplicava silenciosamente que o filho continuasse.
Ele atendeu suas súplicas.
-No Natal eu... Eu tive uma experiência estranha. Eu vi uma realidade que achei que só existia em livros de fantasia. Por algum motivo aquilo fez sentido pra mim e eu entrei nessa realidade. Eu achei que se começasse a acreditar nessas coisas eu começaria a ver o mundo como um paraíso de conto de fadas, mas o que isso me mostrou foi a verdade nua e crua, sem máscaras.
-E o que você descobriu?
-Que a verdade pode ser terrivelmente linda.

Gabriel perguntou para Jesus:
-Você vai unir os dois?
-O que você acha?
-Acho que ambos tem muito em comum, mas não sei se o Josh está preparado para... Como posso dizer? Adotar alguém... Digo, onde isso vai chegar?
Jesus deu um sorriso sereno.
-Observe e verás.
-Não pode me dar nenhuma dicazinha?
-Como isso vai terminar tem muito a ver com o “como tudo começou”.
-Você fala...
-Como a morte começou, Gabriel?
O anjo sentiu um aperto no coração ao lembrar.

Gabriel estava assentado na última cadeira do grande Salão.
O Pai tinha ira nos olhos, mas as lágrimas eram de tristeza.
O Espírito parecia controlar os ânimos ali. Sua força consoladora fazia-se palpável enquanto ele andava lentamente pela extensão gigantesca do Salão.
Pela primeira vez Gabriel via os Serafins com o rosto descoberto, atentos ao centro.
Miguel e Lúcifer olhavam intensamente um para o outro.
Apesar da intensidade ser quase a mesma, os sentimentos eram diferentes.
Miguel olhava para Lúcifer de cima, mas havia súplica e amor em seu olhar.
Lúcifer em contrapartida, olhava de baixo para Miguel e possuía uma presunçosa expressão de desafio misturado com ódio.
A tensão já estava no ar fazia algum tempo. Mas o que começara com uma sensação, tornara-se rumor, de rumor passou a ser discussão, e depois, quando as ideias estavam espalhadas, houveram muitas conversas cheias de amor por parte do Pai.
Até que tudo se tornou rebelião assumida.
E aquele era o ápice.
Gabriel custara acreditar que tudo chegaria àquele ponto.
Mas superando todas as más expectativas, Lúcifer empunhava uma espada.
Gabriel até então não entendia o que aquilo implicava.
Mas quando a rebelião se tornou violenta e ele teve que lutar contra anjos que haviam sido seus amigos, entendeu que algo muito, muito ruim acontecia com quem se permitia se afastar do Pai.
Não era apenas uma tensão.
Era algo que até então lhe era desconhecido, mas que os humanos conhecem muito bem.
A morte.
Ali fora onde a morte surgira.
E o Universo nunca mais fora o mesmo.

Naquela manhã, Josh acordou com um estranho sentimento.
Desde o Natal ele se unira aos Agentes do Amor, um grupo de jovens amigos que fazia boas ações. Ele os encontrara num dia em que Deus o mandara visitar um abrigo para menores.
Desde então ele andava com os tais Agentes do Amor e visitava sempre o abrigo.
Mas naquela manhã ele tinha aquela sensação de novo, de que deveria ir ao abrigo.
Ao chegar lá ele cumprimentou o pessoal que já conhecia e por algum motivo foi para o fundo.
Ele nunca tinha ido ao fundo do abrigo, pois teoricamente não havia nada lá e ninguém ia lá.
Mas ele foi impelido.
O abrigo ficava no alto de um morro.
Logo atrás dele havia um barranco enorme. Uma queda poderia ser fatal.
Ainda assim, à beira do barranco havia um garoto.
Pele escura, cabelos raspados, cicatrizes aqui e ali, e profundos olhos escuros e tristes encarando o abismo como se estivesse flertando com um velho amigo.

Gabriel observava apreensivo.
Jesus tinha lhe dito para ficar a postos.
Estava pronto para agir.
Uma voz fria e cortante de repente falou ao seu lado.
-Olá, velho amigo. Mais uma vez se metendo com assuntos que são meus?
Gabriel olhou para o lado.
Os traços finos continuavam lá.
Belo, mais belo do que qualquer anjo que Gabriel já havia visto.
Porém agora sua beleza parecia ameaçadora, perversa.
Parecia estar o tempo todo na defensiva.
Mas havia uma espécie de autoconfiança quase obscena em sua face quando ele disse:
-Os dois garotos são meus. Diga para o... Nazareno... Ficar fora disso.
Talvez você, como humano que é ficasse com medo ou se sentisse ameaçado.
Gabriel apenas disse:
-Engraçado você dizer isso. O Nazareno me disse que você estaria aqui.
-É? E o que mais ele disse?
-O que você está cansado de saber...
O rosto de Satanás se tornou um pouco mais sombrio.
-O que?
-Você já perdeu a guerra.

PS.: Esse é o primeiro episódio da nova série. Ela é, em partes, continuação da série Véspera de Natal. Clique para ler!

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