[CONTO] A Abominável Desolação Rubra
“Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos. Vede que vo-lo tenho predito. Portanto, se vos disserem: Eis que ele está no deserto!, não saiais. Ou: Ei-lo no interior da casa!, não acrediteis. Porque, assim como o relâmpago sai do oriente e se mostra até no ocidente, assim há de ser a vinda do Filho do Homem. Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres.” (Mateus 24:23-28)
Ele não chegou sem aviso. Eu vi sua sombra chegar aos pouquinhos. O povo estava decepcionado e determinado a colocar qualquer coisa no lugar dos anos de poder da Ordem dos Feiticeiros Escarlates. Então ele se apresentou como a única saída para recuperar a dignidade da terra, ele disse que nossa terra era dominada pelo verde das matas e o amarelo do ouro da nossa riqueza, nosso brasão nunca seria vermelho e as pessoas repetiam esse coro. Ele disse que era de Deus, que a Ordem ia destruir os templos de adoração ao Deus Vivo, mas ele era temente ao Eterno. Alguns profetas dos morros de Salapane até proclamaram sua chegada e alertaram das suas mentiras e destruição que ele causaria. Mas não adiantou.
Ele não tem nome. Alguns de nós aqui na Costa Vermelha chamamos de O Abominável. Chamamos assim a Costa Vermelha por causa das estradas de chão que sujam qualquer pé com a terra vermelha. Já era difícil morar aqui antes, mas depois do Abominável ficou pior. Mas não se engane, nem todo mundo enxerga os tentáculos do Abominável, a carne podre exposta por sua falta de pele. O Abominável não é só um monstro devorador sem mente, como muitos pensam. Ele tem estratégia e magia poderosa. Magia inclusive de controlar como as pessoas o veem.
Vê-lo é como ver aquelas figurinhas impressas da minha infância que mudam quando você as vira.
De um ângulo, ele é apenas um homem comum. Podia ser o tio de alguém, aquele que faz a piada do pavê todo fim de ano na festa de família. Mas esse é seu feitiço.
Eu só o enxergo dessa forma quando vejo pelo canto do olho.
Desde a primeira vez que olhei diretamente pra ele eu vi o Abominável.
Tinha o tamanho de um homem comum quando apareceu, mas seus tentáculos e sua carne podre que caía enquanto ele andava já estavam lá. Antes só caísse. A carne que caía dele geralmente era absorvida por qualquer tipo de superfície. O bolo meio avermelhado, meio esverdeado, pulsante, pois não estava morto, apenas podre, se espalhava pelos poros da terra, nua ou coberta de cimento. A mancha verde ficava ali como mofo antigo e se espalhava. Alguns cientistas tentaram estudar o fenômeno e perceberam que a carne só se plantava assim pois as fundações da terra do país eram solo fértil para sua constituição.
Eu via aquilo e meu coração estremecia de pavor.
Ele tinha pernas que pareciam humanas, e estava sempre vestido com sapatos muito bem lustrados e uma calça social azulada muito bem passada. Parecia coisa de grife. Era um mistério como ambas as peças de roupa permaneciam intactas quando do tronco pra cima ele era uma massa disforme de carne podre e tentáculos sempre pingando sangue e seu suor de mercúrio. De alguma forma, ele tinha várias bocas ali naquela bagunça incompreensível, e elas eram distinguíveis ali naquele meio, grandes, sorridentes, falantes. O sorriso sempre de escárnio. As falas sempre violentas, uma violência dita com harmonias simples e cativantes.
Os tentáculos dele eram famintos. Vi comerem muita gente, e a cada pessoa que ele comia, ele ficava maior, como se o corpo não fizesse digestão, apenas acrescentasse o alimento à sua massa. Aliás, massa de carne e tentáculos que ficava cada vez maior e mais nojenta, mais disforme. Com sua fala comum, de tio do pavê, o Abominável foi estendendo seus tentáculos em diversos lugares, sem nenhum escrúpulo ou cuidado. Ele não estava preocupado com o fato de que seu tamanho descomunal poderia, mesmo sem querer, destruir áreas inteiras.
Ano passado mesmo, vi o tentáculo responsável pela sua respiração chegar nas Terras Úmidas do Norte e absorver todo o oxigênio disponível. Em parte porque o tentáculo destruiu várias porções de florestas responsáveis pela umidade que dava nome à terra, em parte pelo seu tamanho descomunal e sua negligência em seus movimentos. Foi com horror que vi muitas grávidas, crianças e idosos morrerem asfixiados. Morreu tanta gente que não tinha cemitério o suficiente. Enterravam ali mesmo, mais raso que sete palmos. Até hoje dizem que fede o chão de tal forma que afetou a fertilidade.
Isso fora o mercúrio que seus tentáculos excretam. É seu suor. Destrói rios e terras férteis como se não houvesse amanhã.
Ocupou tanto espaço que começou a apodrecer a carne que se compra no açougue. Uma das coisas mais horríveis que vi nesses últimos anos foram as filas de pessoas para pegarem osso com resto de carne pra botar gosto no arroz quebrado que tinha sobrado pra eles comerem.
Mas o dia em que o Abominável mais me apavorou foi num sábado de manhã na minha igreja.
Era onde eu ia todo sábado, então eu já tinha percebido a influência do Abominável lá. Volta e meia, durante os hinos em pé, eu respirava para cantar as notas mais altas e sentia o cheiro acre e nauseante da carne podre. Tinha manchas verdes na parede e até na pele de alguns irmãos que eu sempre admirei. Eu tinha tentado algumas vezes avisá-los que a carne deles estava apodrecendo, mas eles respondiam com uma raiva enfeitiçada que aquilo era o selo de Deus para protegê-los da marca da besta.
Eu sabia que aquilo não era verdade. Nos nossos Livros Sagrados constava que nós não adoraríamos nenhum tipo de feitiçaria poderosa de nenhuma cor. Mas o Abominável teve muito sucesso em fazer as pessoas crerem que só com feitiçaria verde se poderia combater a vermelha.
Uma das manchas verdes estava no chão logo abaixo do púlpito, e com o tempo foi crescendo e crescendo e abrindo uma cratera no púlpito que ninguém parecia notar. O mofo verde tomou conta e os pés do púlpito de madeira estavam envolvidos naquela mistura de carne e terra vermelha pulsante, com uma boca minúscula que sussurrava ao ouvido de vários dos pregadores desavisados.
Eu tentei levar o assunto ao conselho administrativo da igreja, e eles diziam que eu estava perturbando a ordem, que a igreja era para ser aquilo mesmo: um refúgio para cultivar a boa semente do solo fértil do território do país.
— Ele é o único que pode impedir a Ordem de Feiticeiros Escarlates de subir de novo ao poder, ele é o único com poder para impedir que nós nos tornemos a Terra da Desolação Rubra que vários outros países se tornaram! Você não percebeu? Eles são a Meretriz vestida de escarlata do apocalipse!
Eu tentei lembrar a eles que apesar de não fazerem parte da nossa comunidade, havia sido a Ordem de Feiticeiros Escarlates que garantiu nosso terreno de culto ali. A gente só podia prosseguir com nossos cultos aos sábados ao invés dos domingos, como todos os outros, por causa da Ordem Escarlate.
— O Abominável tem a cara da besta do Apocalipse todinha, gente! A boca que profere blasfêmias, as cabeças que obrigam todos a concordarem com elas! A prostituição que ela traz para a terra. Vocês não enxergam? — Eu tentei avisar, em vão.
Alguns dos outros membros da igreja que enxergavam o mesmo que eu não conseguiam mais suportar o fedor do Abominável invadindo a cátedra e deixaram de ir. Eu os encontrava algumas vezes na semana, mas eu e alguns outros permanecemos indo e tentando limpar a igreja logo após os cultos para conter a praga Abominável.
Alguns desses que iam comigo tinham mais força e experiência, acabavam conseguindo limpar melhor o odor e o crescimento da massa esverdeada. E foram esses os primeiros a sofrer com coisas que até então eu só tinha visto em livros de história medieval e histórias do Stephen King. Membros das igrejas juntaram-se para expulsar essas pessoas do templo, declarando que eles estavam trazendo a Feitiçaria Escarlate para dentro da igreja.
Eu tentei conter meus esforços, pois eu e meus pais, que também enxergavam o que estava acontecendo, éramos muito conectados àquela comunidade. Nós amávamos aquele lugar e acreditávamos em tudo o que os Livros Sagrados que juramos crer dizia.
Eu tinha esperança de que depois de anos de podridão, todos enxergassem a corrupção, a destruição, a maldade e as mentiras do Abominável, todas as mortes que ele tinha cuidadosamente arquitetado com seus tentáculos e bocas. Mas ninguém enxergou. Todos permaneciam com medo da Ordem Escarlate a tal ponto, que a adoração ao Abominável substituiu o verdadeiro culto ao Eterno como pregavam os Livros Sagrados.
Eu saí um tempo de férias com um grupo de fiéis para pregar a Magia Profunda dos Livros Sagrados através de canções curativas visitei ruelas e outras comunidades religiosas que me deram esperança de que o Abominável não tinha infectado todos os lugares.
Qual não foi meu horror e espanto quando voltei para a comunidade da Costa Vermelha e o púlpito havia sido substituído pelo altar mais grotesco que eu já havia visto.
Um monte de carne apodrecida cercada de tentáculos havia tomado o lugar do púlpito de madeira, e a pequena boca sussurrante que ficava ao chão, agora se encontrava ao meio e vomitava sangue por toda a comunidade.
E ninguém parecia ver que as nossas Terras Verdes estavam inteiramente sujas do vermelho sangue que brotava das manchas de mofo.
Meu estômago se embrulhou e meus pés ficaram colados ao chão pela mistura de carne, mofo e sangue. Eu tentei vomitar para liberar todas aquelas palavras, mas nenhum alívio veio.
Eu tentei gritar. Na minha cabeça eu gritei: “VOCÊS NÃO VÊEM O ESCARLATE DO ANTICRISTO BROTANDO DO ALTAR AO ABOMINÁVEL? VOCÊS NÃO VEEM QUE VÃO TODOS ADOECER SEM DINHEIRO PARA TRATAMENTO? QUE JÁ NOS TRANSFORMAMOS NA TERRA DA DESOLAÇÃO RUBRA POR CAUSA DO ABOMINÁVEL?”.
Mas não consegui produzir som. O refluxo ardente queimava minhas cordas vocais.
O relógio na parede, ainda em pé, apontava que tínhamos apenas três dias para remover o Abominável do nosso meio, mas não havia nenhum sinal de que, pelo menos dentro da minha comunidade religiosa da Costa Vermelha, ele cairia.
O sangue começou a subir e subir e agora eu me encontro paralizado.
Olhando fixamente para o relógio.
Eu tento gritar, mas a voz das bocas do abominável sai de várias pessoas que amo. Essas pessoas entoam um coro dissonante, agudo, que parece o som de milhares de mulheres asfixiadas tentando gritar. Elas sorriem ao ouvi-lo. Quando conseguem falar com as próprias vozes, dizem que aquela deve ser a música que toca na Eternidade.
— EIS O MESSIAS! EIS O CRISTO! — gritam.
Com horror indizível eu percebo que aqui, neste momento, na comunidade onde meus pés estão colados, o Abominável venceu.
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