O Sábado do Silêncio



Uma vez por ano, como tradição, comemoramos a Sexta-Feira da Paixão e o Domingo de Páscoa em reconhecimento à eficácia do sacrifício de Cristo que João chama de “Cordeiro de Deus”.

Desde Gênesis, a Bíblia deixa claro que a consequência mais direta do pecado é a morte. Não apenas a consequência, mas a solução. A vergonha de Adão e Eva só é coberta pelas vestes de pele tecidas pelo próprio Deus (Genesis 3:21), a consequência do pecado de Caim é ainda mais grave, pois seu sacrifício não foi contrito e não foi aceito por Deus (Genesis 4), somente o Dilúvio pôde aplacar a maldade dos seres humanos (Genesis 6:5-8) e foi ao aspirar “aroma suave” do sacrifício de Noé que Deus prometeu nunca mais amaldiçoar a terra por causa do homem e enviar outro dilúvio (Genesis 8:20-22). O sangue nos umbrais e nas vigas das portas foi o que impediu a morte de alcançar as famílias de Israel no Egito e essa mesma morte libertou-os da escravidão (Êxodo 12) – elementos que mais tarde seriam usados por João ao retratar Cristo como o Cordeiro de Deus cujo sangue nos cobre e nos livra da escravidão do pecado e também da morte (João 1:29; 6:51, 54, 56; 8:33-35; 51; 19:29, 33-37 – relacionado a Êxodo 12:46). O sacrifício de Cristo na Sexta-Feira da Paixão derramou o sangue necessário para a remissão de pecados (Hebreus 9:22) e a sua ressurreição no Domingo de Páscoa foi a prova definitiva de que através dele a morte foi vencida.

Mas entre um dia e outro, há um dia esquecido. Um dia que ninguém lembra, um dia que só é citado nos relatos da crucificação para justificar a retirada apressada dos corpos das cruzes. O Sábado. Embora na tradição católica este seja chamado o Sábado de Aleluia e geralmente é quando fazem os bonecos de Judas e os queimam, teologicamente, nos três dias que envolvem a morte e ressurreição de Jesus, o sábado é o dia do silêncio.

Poucos olham para o sábado como um dia que efetivamente faça parte do conjunto da obra de salvação. Poucos prestam atenção no que o silêncio tem a dizer. Mas todos – sem exceção – sabem que há uma lacuna a ser preenchida, há uma angústia que ocupa o coração de todo ser humano. Uma pergunta sem resposta que nos incomoda, permanece ali, no canto do olho, sem nunca entrar em foco. Sabemos que a cruz é a resposta para todo sofrimento, sabemos que a ressurreição é a solução final da morte e cremos que um dia Jesus, o primogênito dentre os que venceram/vencerão a morte, chamará os mortos dos túmulos e estes ressuscitarão e que herdaremos uma Nova Terra sem morte, sem tristeza e sem dor. Se você crê na Bíblia e em suas promessas, você crê nisso. Mas até lá, existe uma pergunta que nós tentamos ignorar, mas ela nunca se cala: onde está Deus enquanto esse dia não chega e inocentes morrem todos os dias das formas mais injustas imagináveis?

Mas há algo que eu percebi sobre o sábado (graças a um amigo meu chamado Lúcio e ao meu professor de Pentateuco, Edson Nunes Jr.): O sábado é um dia de silêncio desde antes do pecado. Gênesis 2:1-3 é o que termina o primeiro relato da criação do mundo. Deus começa e termina o relato. Enquanto no verso 1 de Gênesis 1, Deus cria, no verso 3 de Gênesis 2, Deus descansa. Do primeiro ao sexto dia, Deus fala para as coisas surgirem, no sétimo dia Deus, silenciosamente, abençoa e santifica o sábado pelo ato de descansar. O centro da bênção e santificação do sábado é o descanso de Deus.
No quarto mandamento em Êxodo 20:8-11, Deus pede que lembremos do sábado para o santificar por uma razão muito simples: por que ELE descansou no sábado. Quando os mandamentos se repetem em Deuteronômio 5, Deus pede que o povo de Israel guarde o sábado como dia santo por tê-lo liberto da escravidão do Egito – assim como Cristo nos liberta da escravidão do pecado. O sábado está relacionado ao descanso de Deus e também à libertação que Ele oferece. Além disso, o sétimo dia é sobre a soberania do Senhor, pois este é o princípio e o fim da criação.

Quando queremos entender o que quer dizer uma expressão na Bíblia que nos parece estranha ou não muito clara, ajuda se procurarmos onde mais se encontra a mesma expressão ou expressões parecidas. Deus relacionado a repouso aparece em diversas outras passagens como no salmo 132:7-18, onde Deus se LEVANTA (como quem está deitado) para entrar na sua casa de repouso, que no salmo claramente está relacionada ao Templo. Em Isaías 66:1, Deus relaciona novamente sua casa de repouso com Santuário. O Santuário é onde Deus habita no meio do povo, sinal de seu governo sobre eles. O Santíssimo é a sua sala do trono (isso rende outro texto), o lugar onde um Rei julga e governa.

O descanso de Deus no Sábado é a sua autoridade e poder manifesta no tempo. Como diria Heschel, o sábado é o santuário de Deus no tempo, onde ninguém pode tocar ou destruir.

Deus é soberano até em silêncio. Na verdade, como no caso do sábado, várias vezes, o seu silêncio serve exatamente para mostrar sua soberania.

Ainda assim, nós não gostamos do silêncio. Nós gostamos de falar. Isso me lembra dos amigos de Jó que falaram muito, tentando defender a justiça divina e justificar o que ocorria com Jó lhe apontando os dedos e ainda levaram uma dura de Deus. Eles falam sobre o que não sabem, como Deus faz questão de destacar (Jó 38:2). E mesmo para Jó, a quem defende e dá razão, Deus faz uma série de perguntas que servem para demonstrar nossa pequenez diante da grandeza e sabedoria do Criador. Deus não conta para Jó o que aconteceu no céu que provocou seu sofrimento. Jó permanece no escuro e sua resposta é humilde. Ele põe a mão na boca por reconhecer que nada sabe (Jó 40:3-5), mesmo que Deus pareça dar a ele a licença para reclamar de sua sorte. Talvez seja nesse sentido que, ao responder os questionamentos de Habacuque, Deus relembra que Ele é soberano, que Ele está em seu Santo Templo a julgar e toda a terra deve se calar diante dEle (Habacuque 2:20).

Mas na nossa cabeça, em seu silêncio, Deus demora, Deus parece não ver, Deus parece injusto. Mesmo que, diversas vezes, o silêncio signifique exatamente a presença de Deus, como acontece em 1 Reis 19:11-13. O silêncio na Bíblia também é sinal de sabedoria. Em Deuteronômio 27:9, o povo de Israel deve fazer silêncio para ouvir o que Deus tem a dizer, e ouvir a Deus implica em não apenas escutar, mas obedecer. Nossa noção ocidental de sabedoria é construída em cima do muito questionar e argumentar. Nossa percepção de justiça também é baseada na argumentação, e por isso questionamos o poder de Deus ao observar seu silêncio perante a injustiça. Questionamos não apenas a sua justiça, mas também o seu amor. O amor na nossa cultura geralmente é relacionado a poemas bem recitados, belas flores e caixas de bombom, a justiça é sobre argumentação e serenidade. O amor de Deus é demonstrado em ações de misericórdia, mas também em morte e derramamento sangue, assim como sua justiça é representada ora pelo seu silêncio, ora por sua ira.

Mas o maior ato de justiça divina, que também foi sua maior demonstração de ira, também é contornado pelo silêncio. Nós olhamos para Cristo esmagado e crucificado e vemos ali a ira de Deus manifesta em sua forma mais agressiva. Ali ele “foi oprimido e afligido, contudo não abriu sua boca [...] como ovelha muda perante seus tosquiadores” (Isaías 53:7), e ali, Cristo demonstrou o peso do silêncio da justa ira divina sobre si ao clamar “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste? ” (Mateus 27:46/Salmo 22:1).

Assim como o descanso silencioso de Deus no sábado da criação reflete sua soberania como Criador e Mantenedor, o silêncio de Cristo no sábado de Páscoa reflete sua resposta silenciosa ao sofrimento. Ele sofreu calado e na morte, ele demonstrou sua soberania sobre a vida.

Diante desse quadro aterrador, toda a nossa retórica emudece, nossos questionamentos mais profundos se tornam rasos, nossa mais sincera e justa revolta ante a injustiça se torna injustificada. Diante do soberano ato de Cristo de calar-se morto no sábado, só podemos oferecer o nosso emudecer contrito.

No fim das contas, entre o derramamento de sangue que cobre nossos pecados na sexta, e a ressurreição estrondosa que nos redime da morte no domingo, talvez o silêncio eloquente do sábado seja exatamente a resposta que procuramos para o nosso torturado presente.


Feliz Páscoa!

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