[Resenha] Gabriel Iglesias canta sobre transformação de "Pedra em Carne"



Bĕrît 'ôlām, transliterado do hebraico בְּרִית עוֹלָם, quer dizer "aliança eterna".
Aprendi a profundidade do termo aliança (berit) na Bíblia em minhas aulas de Antigo Testamento. Nas conversas, textos e livros indicados pelos professores, encontrei algumas ligações que hoje para mim parecem óbvias, mas que não pareciam antes, por mais que estivessem na cara o tempo inteiro. Assim como sempre consegui - e ainda consigo - enxergar o grande conflito cósmico entre o bem e o mal permeando todas as narrativas, poesias, profecias e conselhos bíblicos, hoje eu consigo enxergar também o retrato de uma aliança que se configura como um imenso quadro do amor e da misericórdia de Deus pela humanidade. O conceito da aliança dança graciosamente entre a intimidade da experiência individual com Deus e o senso do que nos une como humanidade.

Ainda assim, a teologia da aliança não é tão explorada quanto poderia fora do circuito teológico onde me encontro. Talvez por isso esbocei um meio sorriso de olhos fechados ao ouvir o som ao mesmo tempo intimista e "perdido na imensidão" da faixa "Berit Olam" que abre graciosamente a viagem (em todos os sentidos possíveis da palavra) que é o álbum "Pedra em Carne" de Gabriel Iglesias (sim, o mesmo do trio Igl3sias sobre o qual escrevi lá atrás em 2010).
Deus fez Aliança Eterna com Noé, com Abraão, com Isaque e finalmente com Israel (Jacó) e seus filhos e por fim essa aliança foi perpetuada na descendência de todos estes, consumada em Cristo (falei um pouco sobre isso aqui). Essa consumação da Nova Aliança em Cristo foi o fio de esperança que contornou as desesperadoras profecias de Jeremias sobre o exílio do povo de Israel. O capítulo 31 do livro do profeta é um dos maiores estandartes dessa esperança e no verso 33 a mensagem é clara:

"'Esta é a aliança que farei com a comunidade de Israel depois daqueles dias', declara o Senhor: 'Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo.'"

É com base nessa transposição da Lei para os corações dos indivíduos (abordada de forma direta também em Ezequiel 36:26 e 2 Coríntios 3:3) que o título do álbum se justifica. Ele já aparece na segunda faixa, "Pedra", que com seu compasso aparentemente descompassado já prenuncia o paradoxo do ser humano que entra em contato com a Lei de Deus, estabelecida como parte da aliança. Teologicamente profunda, "Pedra" é cativante, criativa, mas ao mesmo tempo exige um certo esforço para a aproximação, um exercício de absorção mais lento. E é assim com a maioria das canções do restante do álbum.
Mesmo em faixas mais "fáceis" e deliciosas de escutar como as duas seguintes - "Monte" e "Jerusalém" - a mente única do Gabriel e o tempero dos seus colaboradores trazem uma originalidade impressionante ao álbum, que nunca perde a profundidade teológica nem a qualidade musical.

"Eternidade em Mim" é um incrível exercício de retórica musical que expande a mente do ouvinte para a sua imaginação e o natural questionamento do ser humano sobre como a eternidade pode funcionar. Seus quase 7 minutos se dividem em duas partes distintas da música que a transformam numa experiência sensorial e cognitiva de um jeito que poucas músicas conseguem.

Com "Ser Obedecer" não é diferente. A faixa mais longa do álbum apenas confirma coisas que as músicas anteriores já trazem: "Pedra em carne" tenta resgatar os conceitos bíblicos dentro da mentalidade da cultura hebraica, contexto no qual a Palavra de Deus foi escrita. "O existir vem depois de obedecer". Deus ordena e às coisas vêm à existência. Se não há obediência, não há existência. Todos somos convocados "a ser resposta à voz de Deus". É uma mensagem nada popular e que subverte tudo o que nossa mentalidade pós-moderna prega.
Apesar da mensagem incômoda, a faixa é um deleite para os ouvidos e não parece ter a duração que tem. É como uma epifania de reconhecimento e entrega que culmina com uma percepção melancólica materializada em "O Circo", que parece um divisor de águas no álbum. Representação e simulacro (se quiser entender melhor esse conceito dá uma googlada em Baudrillard e seu conceito de simulacros) são termos que permeiam o questionamento sobre ser e parecer da canção que é composta e arranjada de forma a nos transportar para a angústia da dúvida.

Mas é um alívio perceber que além d'O Circo há um "Horizonte". Não é um horizonte que possamos alcançar. Não é esse horizonte que nos conforta, mas o Cristo que o cruza pra nos buscar. Durante todas essas faixas o paradoxo do Ser humano em contato com a aliança permanece. Mesmo na cinematográfica (não encontrei palavra melhor para descrever) "Velho Amor" o encontro do divino com o humano está implícito no conceito de amor apresentado. Mas esse paradoxo ganha voz clara em "Tensão". É como se a música justificasse o fato de o tempo inteiro o eu lírico estivesse preso ao que Deus revelou sobre si em sua Palavra e às experiências que o artista obteve com o Pai - também comandadas pela iniciativa dEle de se revelar.

Se até este ponto ainda havia alguma dúvida que a mensagem de Jeremias permeia o álbum da primeira à última música, antes mesmo da faixa final, que leva o nome do profeta, tanto "Tensão" quanto "Cedro" nos entregam uma belíssima interpretação do que seria a mensagem de Jeremias 17.

" 'Mas bendito é o homem cuja confiança está no Senhor, cuja confiança nele está.
Ele será como uma árvore plantada junto às águas e que estende as suas raízes para o ribeiro. Ela não temerá quando chegar o calor, porque as suas folhas estão sempre verdes; não ficará ansiosa no ano da seca nem deixará de dar fruto'. O coração é mais enganoso que qualquer outra coisa e sua doença é incurável. Quem é capaz de compreendê-lo? 'Eu sou o Senhor que sonda o coração e examina a mente, para recompensar a cada um de acordo com a sua conduta, de acordo com as suas obras.' " Jeremias 17:7-10

"Ser Obedecer" e "Cedro" se comunicam: há o desejo de entrega apesar do coração. Há o desejo de obediência apesar do pecado.

Mas o coração que confia no Senhor não permanece calado. Aquele que confia no Senhor, aceita sua Aliança Eterna, permite que Ele escreva sua Lei no coração, eleva seus olhos ao Monte, seu coração exilado anseia por Jerusalém, se torna morada da Eternidade, atende à voz de Deus em obediência, percebe o problema da adoração superficial, persegue o Horizonte daquele que vem ao seu encontro, permite que o velho amor se refresque em sua vida, vive a tensão de estar perto e longe, se mantém firme como o cedro durante todas as estações e, por fim, se torna boca de Deus.

O paradigma do profeta vivido de forma intensa por Jeremias é cantado com propriedade na última faixa, que de forma genial revisita todo o tema do álbum acrescentando à jornada a responsabilidade de trazer do trajeto a mensagem que ninguém está disposto a ouvir. E talvez seja exatamente nesse contexto da mensagem de "outro mundo", do recado impopular vindo da parte de Deus, do chamado do profeta em Jeremias 1, que repouse o conceito do videoclipe da música. Aliás, música essa que termina quase sem final, inconclusiva, incompleta. É apenas o primeiro de muitos, apenas uma mensagem que ainda não foi concluída.

Gabriel está expondo, em suas palavras, o "Assim diz o SENHOR" de Jeremias.
É um álbum escrito por ele, mas é sobre o que ele aprendeu na Palavra do Senhor.
É um álbum onde ele expõe sua alma, que foi atravessada e dividida pela espada que é a Palavra do Senhor.
São canções com a cara do Gabriel Iglesias, mas sobre coisas que não dizem respeito apenas a ele.
Por isso ele toma as palavras de Jeremias para si. Por isso as canções são casamentos belíssimos de elementos da música brasileira, do rock progressivo, do britpop e de várias outras coisas que se transformam em algo único - tudo executado com esmero técnico impressionante. É a humanidade se unindo à mensagem divina para que toda a Terra saiba quem Ele é e quem Ele nos criou para ser.

"Pedra em Carne" merece - e precisa - ser ouvido calmamente, num lugar confortável, e várias vezes até que se absorva tudo o que ele carrega. De preferência, leia Jeremias. Afinal, Gabriel Iglesias escolheu ser nada mais do que boca para a Palavra de Deus.

A palavra do Senhor veio a mim, dizendo:
"Antes de formá-lo no ventre eu o escolhi; antes de você nascer, eu o separei e o designei profeta às nações".
Mas eu disse: "Ah, Soberano Senhor! Eu não sei falar, pois ainda sou muito jovem".
O Senhor, porém, me disse: "Não diga que é muito jovem. A todos a quem eu o enviar você irá e dirá tudo o que eu lhe ordenar.
Não tenha medo deles, pois eu estou com você para protegê-lo", diz o Senhor.
O Senhor estendeu a mão, tocou a minha boca e disse-me: "Agora ponho em sua boca as minhas palavras.
Veja! Eu hoje dou a você autoridade sobre nações e reinos, para arrancar, despedaçar, arruinar e destruir; para edificar e para plantar".
Jeremias 1:4-10

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